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Marcos Losekann: 'Trocaria as guerras que eu cobri pelo título de correspondente da paz'

Marcos Losekann: "Trocaria as guerras que eu cobri pelo título de correspondente da paz"

Com cinco coberturas de conflitos na bagagem, o repórter da Globo, o primeiro correspondente da TV brasileira no Oriente Médio, já foi sequestrado por extremistas e viu a morte muito de perto

Publicado em 8 de fevereiro de 2015 às 16:47

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Entrevista publicada originalmente em 08/02/2015

As palavras coragem, sorte e pioneirismo contornam uma história profissional escrita em mais de 120 países ao longo de 30 anos. Com cinco coberturas de guerras carimbadas no passaporte, o repórter da TV Globo Marcos Losekann, 49, viu de perto combates sangrentos, tornou-se o primeiro correspondente de uma TV brasileira no Oriente Médio, foi sequestrado por extremistas e escapou por pouco da morte ao levar a realidade do mundo a milhões de brasileiros.

Losekann em sua estreia cobrindo o conflito entre palestinos e israelenses. (Reprodução/TV Globo)

Por trás da imponência dos números e do currículo, um profissional que não pôde mostrar na TV a realização de um sonho: ser mensageiro de um acordo de paz. “Dez em cada dez repórteres gostariam de ser correspondente de guerra. Mas a guerra é suja, feia, fede, tem um cheiro específico que mistura carne humana em putrefação com pólvora no ar... Eu trocaria os cinco conflitos que eu cobri e que me deram esse título de correspondente de guerra por um de correspondente da paz”, revela, com convicção.

Os voos que levaram Losekann a coberturas históricas, como a da morte de Osama bin Laden no Paquistão, e entrevistas que garantiram furo internacional, como a que fez com a ex-prisioneira das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) Íngrid Betancourt, na França, trouxeram o repórter de volta ao trabalho no Brasil em 2013.

Pai de um jovem de 19 anos e de duas meninas, Marcos, como o próprio se chama ao falar sobre sua vida pessoal, também é marido e cidadão que deseja ver seu país à altura de nações desenvolvidas.

"Dez em cada dez repórteres gostariam de ser correspondente de guerra. Eu fui correspondente de guerra. A guerra é suja, feia, fede, tem um cheiro específico que mistura carne humana em putrefação com pólvora no ar", diz Marcos Losekann. (Guilherme Ferrari)

Como foi fazer a primeira cobertura completa de uma guerra direto do front no Oriente Médio em 2006?

A TV Globo, assim como a imprensa de modo geral, principalmente a TV brasileira, sempre cobriu as guerras fazendo incursões em períodos, acompanhados pelos Exércitos por causa da proteção. A Globo já havia coberto muitas guerras importantes, mas nunca do começo ao fim. Em 2006, por eu ser o correspondente no Oriente Médio, eu estava num país que entrou em guerra contra o Líbano. Foi quando o Hezbollah sequestrou soldados israelenses e Israel revidou. Foi a primeira vez na história da imprensa brasileira que uma guerra foi coberta inteiramente do front. Tudo bem que, sorte a minha, ela só durou 33 dias, mas se ela tivesse durado um ano também seria coberta porque estávamos num país em guerra. Quando o Hezbollah atacava Israel eu sempre estava por perto, vendo os ataques e vendo os contra-ataques.

Foi uma contrapartida sua de acompanhar de perto?

Com o advento da internet, nós pudemos nos enfiar nas bibocas do planeta porque não dependíamos mais de um horário específico aberto no satélite para enviar as reportagens para a TV. Com essa descentralização, a Globo, em vez de ter cinco equipes em Londres, passou a deixar duas no país e as outras três espalhadas, inicialmente em Paris (Caco Barcellos), em Roma (onde Ilze Scamparini já atuava) e foi criado o posto do Oriente Médio, com base em Jerusalém, onde fui convidado a trabalhar. Quando cheguei, ainda peguei a Intifada, que é a revolta dos palestinos contra a ocupação israelense. Semanalmente eu escutava ao longe aquele ‘tuf’, porque não é um estouro do tipo ‘boom’. Aí podia saber que era um homem-bomba que havia se explodido. Era só procurar onde tinha acontecido e fazer a cobertura. No início, cobri muitos ataques de homens-bomba, o que me fazia não andar de ônibus, não ir a mercado público, nem em qualquer lugar onde tivesse muita gente, porque são os lugares que eles preferem explodir. Quando isso diminuiu, que deu uma calmaria, começaram os conflitos mais diretos. Volta e meia os moradores de Gaza atacando o Sul de Israel. Quando menos esperávamos, a guerra foi ocasionada pelo Hezbollah, que são libaneses. Eles atravessaram a fronteira, que é uma cerca, sequestraram soldados israelenses e levaram para o outro lado para usar os reféns como moeda de troca. Israel não aceitou esse tipo de atitude e partiu para a guerra. Cobrimos essa guerra por 33 dias. Essa sim, todo o santo dia no front, junto com os soldados atirando e até mesmo fazendo incursões dentro do Líbano para ver a desgraça lá, onde o sofrimento era maior porque o poder bélico de Israel é maior. Nada impedia que nós passássemos por situações de risco.

Quando foi que quase acabou atingido por um míssil?

Estávamos gravando numa cidade-fantasma, explicando que todos tinham saído de lá por causa do risco. Eu explicava que o risco eram os mísseis que os libaneses usam. Quando estava falando, o míssil caiu a 50 metros de mim e do cinegrafista. Eu não morri porque entre mim e o local da queda havia uma plantação de macieiras e essas árvores absorveram os estilhaços. Eu estava de colete, mas não seria isso que impediria que eu morresse. Depois que a guerra acabou, eu levei minha mulher para mostrar o local e vi ainda estilhaços cravados nos troncos daquelas macieiras. Foi aí que vi que realmente sobrevivi a algo mais perigoso do que imaginava.

Antes desse conflito, quais foram as outras guerras que cobriu?

A primeira foi aqui mesmo na América Latina, entre Equador e Peru, em 1995. A guerra na Cordilheira do Cóndor, que faz fronteira com os dois países, era nos moldes antigos ainda. Trincheira contra trincheira. Foi importante também porque o Brasil teve papel importante ao mediar o fim do conflito. A segunda foi a guerra no Afeganistão, em 2001, que foi a resposta dos EUA para acabar com o Talibã após o ataque às Torres Gêmeas. Eu já estava trabalhando em Londres, em função da Inglaterra ser um dos países participantes da coalizão. A terceira, em 2003, foi a guerra no Iraque em que Saddam Hussein foi deposto e depois morto. A quarta, em 2006, foi a que citei entre Israel e Líbano. A quinta e última foi a guerra civil na Líbia, em 2011, que acabou com o poder de Muamar Kadafi. Essa cobri em duas etapas, sem o apoio de nenhuma força de segurança. Quando mataram Bin Laden, em 2011, nós fomos a primeira equipe ocidental a chegar porque era feriado e não teria como emitir visto. Lembrei, então, que um engenheiro da TV dizia que o pai era importante no Paquistão. Liguei para ele e pedi que arranjasse o visto. Chegamos antes de toda a imprensa ocidental. Jornalista tem que ter sorte também.

Como é cobrir uma guerra?

Dez em cada dez repórteres gostariam de ser correspondente de guerra. Eu fui correspondente de guerra e a guerra é suja, feia, fede, tem um cheiro específico que mistura carne humana em putrefação com pólvora no ar. Eu não saberia te descrever o cheiro. Um cheiro de esgoto, porque cada vez que uma bomba cai numa cidade explode todos os canos de esgoto e aquilo tudo vem à tona. A guerra é nojenta. E você só descobre isso fazendo. Você consegue perceber só depois que faz guerra que o verdadeiro rótulo legal de se ter no passaporte da vida profissional seria correspondente da paz e não correspondente de guerra. Eu fui para o Oriente Médio e logo me contagiei pela vontade louca de me tornar um correspondente da paz. Eu pensei: meu Deus do céu será que vou conseguir sair daqui testemunhando um acordo de paz histórico entre Israel e palestinos? Quem sabe um acordo de paz entre muçulmanos radicais e o resto do mundo? Eu trocaria os cinco conflitos que eu cobri e que me deram esse título de correspondente de guerra por um de correspondente da paz. Mas eu me frustrei. Fui correspondente por 13 anos, fiquei três deles no Oriente Médio e saí de lá sem ter realizado esse sonho. E o mais triste é que só morando lá você percebe que há perdedores nas duas trincheiras. É uma minoria que quer guerra, que quer briga, mas essa minoria é que dita as regras.

Você acha que grande parte dessas coisas aconteceram por que você teve coragem de ir aos locais e não ter ficado refém de agências de notícias?

Nós temos acesso às agências, mas quando você mora na região de conflito como eu morei, você é contagiado pela vontade. Jornalista tem uma bateria que parece que não acaba, então a gente tem muita vontade de checar, de ver com os próprios olhos. Eu nunca me contentei com as informações pasteurizadas das agências, eu sempre quis ver, mesmo que fosse um pedacinho a mais para contribuir. Mesmo que 90% da minha matéria hoje à noite vá ser baseada em agência, ela vai ter 10% que eu mesmo fiz, que eu mesmo vi, que eu mesmo chequei e que eu mesmo comprovei, que é o mais importante.

Você conta que já foi sequestrado. Como aconteceu?

Eu andei por vários lugares perigosos e tive muita sorte. Estive em todos os lugares que poderia ter acontecido algo ruim comigo e não aconteceu. Ou por momento, por circunstância ou por um cruzamento de fatores. Depois de um ano morando e trabalhando em Londres, eu voltei ao Oriente Médio, no Líbano, para fazer uma reportagem de uma mulher criada no Brasil, filha de libaneses, que foi levada pelos pais para se casar com o primo, conforme o costume árabe, e, por esse primo ser violento, ela resolveu fugir. Fomos acompanhar, para o Fantástico, a saga dela fugindo pelas montanhas da fronteira da Síria. Aproveitei que estava no país para fazer uma matéria de um restaurante que usava como tema as guerras, chamado “pães e armas”. O som ambiente era de tiro, a decoração era de armas e capacetes. Nós achamos que o nosso visto para fazer a outra matéria valesse para tudo. Não sabíamos que no local do restaurante quem mandava era o Hezbollah. E assim que nós começamos a gravar chegou um carro do grupo e nos sequestrou. Fui colocado num carro, sem ver nada, e fui levado em três locais diferentes, sempre sem saber onde, para ser interrogado. O último local era um quarto com água nojenta no chão, onde ratos nadavam, e eu tive que ficar descalço, com as pernas cruzadas em cima de uma cadeira. Eles fizeram isso também com o produtor e o cinegrafista, cada um numa sala diferente. Faziam as mesmas perguntas para ver se alguém se contradizia. Achei que fossem me matar porque se olhassem no Google e vissem que eu vinha do Oriente Médio, iam achar que eu era um espião. Depois de 5h20, apareceu um sujeito que foi educado nos Estados Unidos – deu para perceber o sotaque dele –, que parou de ver conspiração na nossa presença e nos tratou um pouquinho melhor. Depois de ficar com nossos chips de celulares e com as nossas fitas, nos largaram em uma rua escura. Devolveram os equipamentos, e o cinegrafista conseguiu esconder, na cueca, a fita que usávamos. Tínhamos o material até o momento da nossa prisão e então consegui fechar uma matéria. O que o Estado Islâmico faz não tem sentido. Você não pode conquistar nada com a antipatia geral. O Estado Islâmico usa a tecnologia para exaltar uma monstruosidade, uma desumanidade. Que show é esse de tirar a vida de uma outra pessoa em frente a uma câmera? Eles querem provar que são monstros, já provaram. Não precisa mais disso.

Você se acha corajoso?

Não. Eu acho que eu sou um cara que não tem 'desconfiômetro'. Toda vez que me envolvi em risco, só depois que passou e eu já estava em casa, ia na página do Jornal Nacional e revia as matérias. Eu pensava: 'Nossa!'. Morro de medo depois, quando estou no sofá.

Nas guerras o que você comia?

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Levava sucrilhos, barrinha de cereal e até enlatado de feijoada, que esquentava junto com a comida dos soldados. E água mineral porque não dá para confiar. Eu tive salmonella várias vezes e aprendi que tem que tomar água de fonte segura. Tem que comer coisas empacotadas, com procedência confiável, como bolacha e batatinha. Mas no Oriente Médio, no dia a dia, eu sou campeão de comer comida típica. Eu desembarquei aqui em Vitória e a primeira coisa que eu quis comer foi uma moqueca. Eu gosto, já tinha comido e estava com saudade. Eu sempre procurei comer as comidas típicas.

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