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Mães recorrem à Justiça para ficar mais tempo com os filhos

Mães recorrem à Justiça para ficar mais tempo com os filhos

Seja para ampliar a licença-maternidade, seja para reduzir a jornada de trabalho, elas só querem a oportunidade de acompanhar de perto as crianças que precisam de cuidados especiais

Publicado em 7 de outubro de 2019 às 06:05

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Luzia Francisco e seu filho. (Vitor Jubini)

LUIZA MARCONDES

A servidora pública Luzia Coelho, de 44 anos, se preparava para o nascimento do seu segundo filho, em fevereiro deste ano, quando teve a surpresa: Miguel precisaria ser internado. O bebê, que atualmente está com sete meses, nasceu com malformação no coração, um canal do pulmão obstruído e síndrome de down, e precisou ficar os primeiros três meses e meio de vida internado em uma Unidade de Terapia Intensiva Infantil (Utin).

Com mais da metade do tempo de licença-maternidade sem poder conviver de fato com a criança, Luzia decidiu buscar na internet casos semelhantes ao dela, de mulheres que conseguiram ampliar o tempo do benefício para que o afastamento começasse a ser contado a partir do dia que o filho teve alta.

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Antes do nascimento eu não sabia que ele tinha nada disso. Esses meses no hospital foram muito cansativos. Miguel ficou internado na Utin e, por muitas vezes, não pude pegar meu filho. Quando eu finalmente estava indo com ele para casa, percebi que já estava quase na hora de voltar a trabalhar

Luzia Coelho
Servidora municipal
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Luzia reuniu, então, todos os documentos e laudos e apresentou à prefeitura em que trabalha, que negou o pedido por não haver regulamento interno para o caso.

“Fui até a Defensoria Pública sem muita expectativa. A única coisa que tinha era a vontade muito grande de ficar com meu filho, de estreitar esse laço que não tive durante a internação. Mostrei tudo o que havia pesquisado para a defensora, e ela embasou a causa com um processo semelhante do Distrito Federal”, contou Luzia.

A defensora pública fazendária, Hellen Nicácio, entrou com uma liminar pedindo a ampliação da licença em 22 de agosto e, no dia seguinte, a Justiça concedeu o benefício a Luzia. No dia 26 de agosto, a prefeitura foi notificada sobre o resultado do processo. A decisão da Justiça, que prorrogou a licença-maternidade de 180 dias para ter início só depois que o filho dela teve alta hospitalar, foi o primeiro caso do tipo registrado no Espírito Santo. Luzia ainda tem mais dois meses e meio para acompanhar Miguel.

“A prorrogação por conta da condição especial da criança foi a primeira. Então, em vez de contar a licença do dia que o bebê nasceu, começou a contar do dia que ele recebeu alta”, afirma Hellen Nicácio ao explicar que o fundamento da licença-maternidade é desenvolver o relacionamento familiar.

“O resultado foi muito rápido. Apesar de ter recebido alta, ele necessita de muitos cuidados especiais e foi encaminhado para tratamento com vários especialistas. Estava preocupada , pensando com quem deixaria ele e se essa pessoa teria esse cuidado. Agora sinto que estou sendo mãe de verdade”, declarou Luzia.

Assim como Luzia, outras mães têm buscado na Justiça a ampliação da licença-maternidade e também a redução da jornada de trabalho para acompanharem o tratamento de filhos que precisam de cuidados especiais.

AÇÃO PARA AJUDAR PROFESSORAS

No último mês, uma ação civil pública movida pela Defensoria Pública do Espírito Santo em Nova Venécia, no Noroeste do Estado, garantiu, em caráter liminar, que professoras contratadas em regime de Designação Temporária (DT) pela Secretaria de Estado da Educação (Sedu) tivessem o mesmo direito à licença-maternidade de 180 dias das efetivas. Antes da liminar, a secretaria concedia o tempo legal da licença pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 120 dias.

O direito às servidoras gestantes efetivas do Espírito Santo a terem 180 dias de licença-maternidade foi assegurado por uma lei complementar, sancionada em maio de 2017. Em novembro do mesmo ano, o artigo 137 da lei 46/1994, que rege os servidores públicos do Estado, foi editado e o direito estendido para todas as servidoras, independentemente do regime de contratação.

“Mesmo assim, o Estado continuou, através de um parecer, negando o direito já assegurado por uma lei. Fizemos essa ação coletiva e ingressamos com o mandado de segurança no Tribunal de Justiça, que foi acatado em menos de um mês”, contou o defensor público fazendário Ricardo Parteli.

O número de grávidas que recorriam à Defensoria Pública para extensão do benefício era tão grande que, segundo Parteli, foi necessário mover a ação civil para resguardar o direito delas e desafogar a Justiça.

“Só na Comarca de Nova Venécia atendi oito mães com o mesmo pedido. Em todo o Estado foram centenas de casos idênticos. Antes da da lei estadual, o Tribunal de Justiça já vinha dando esse direito às professoras com base no Estatuto do Magistério, que equipara a categoria e garante que o professor contratado tem o mesmo direito do professor efetivo”, informou o defensor.

Uma das professoras que recorreu à Justiça foi Leila Medina, de 36 anos. Ela contou que, logo após o nascimento, o filho Nathan foi diagnosticado com insuficiência cardíaca. A professora fez em abril o primeiro pedido de prorrogação da licença na Superintendência Regional de Educação (SRE) de Nova Venécia, e foi negado. Nesta época, o bebê estava com um mês.

Leila, então, recorreu à Defensoria e, quando a licença estava terminando, o desembargador aceitou o pedido.

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Acredito que esses seis meses são de suma importância para o desenvolvimento da criança e, também, deixa a mãe mais tranquila porque, com seis meses, o bebê já está comendo papinha e não depende exclusivamente do aleitamento materno

Leila Medina
Professora
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A Secretaria de Estado de Gestão e Recursos Humanos (Seger) informou, por meio da assessoria, que a concessão de licença-maternidade para as servidoras em Designação Temporária está prevista em lei, que estabelece prazo de 120 dias. Ressalta, contudo, que o governo está obedecendo a decisão judicial e concedendo para as professoras em cargos temporários a licença-maternidade de 180 dias. O governo pretende ainda ampliar a licença para todas as profissionais contratados em regime temporário, por alteração legislativa.

Karla Bridi com a filha, Vitória. ( Fernando Madeira)

REDUÇÃO DA JORNADA

Além dos pedidos de extensão da licença, mães também vêm recorrendo à Justiça para redução da jornada de trabalho a fim de cuidarem de filhos com necessidades especiais. Apesar do direito ser garantido para servidores públicos federais, desde 2016, pela lei 13.370, não há legislação sobre o tema para os demais trabalhadores.

Esse é o caso da assistente administrativa Karla Bridi, de 38 anos, que decidiu entrar na Justiça para reduzir à metade a carga horária de trabalho para que pudesse acompanhar o tratamento da filha Vitória, de 6 anos, que nasceu com paralisia cerebral, tem surdez parcial e foi diagnosticada com autismo.

“Sempre tive a ajuda dos meus pais que a acompanharam até agora no tratamento, mas eles estão ficando com a idade avançada e não conseguem controlar a Vitória em momentos de crise. Então, senti necessidade de participar mais do tratamento dela para não atrapalhar o seu desenvolvimento”, pontua a mãe.

Com os laudos dos médicos em mãos, Karla procurou o administrativo da empresa e pediu para que diminuíssem a carga horária. A empresa, porém, informou que não tinha nenhum regimento interno que possibilitasse a mudança.

“Procurei o sindicato e o advogado deu entrada no processo na Justiça no início de setembro. No dia 13, já fui comunicada da decisão”, explicou. O processo garantiu que Karla possa fazer quatro horas de trabalho diárias sem redução do salário.

“Os servidores públicos federais têm um regulamento autorizando quem tem filho deficiente fazer a jornada de trabalho reduzida para que tenham esse cuidado com a criança. Como a empresa que ela trabalha é de economia mista (público-privada), não existe nenhuma lei que autorize isso”, explicou o advogado trabalhista Ygor Tironi, responsável pelo processo.

De acordo com Tironi, processos com esse tipo de pedido ainda são raros. O primeiro foi feito no Espírito Santo em 2015, na mesma empresa que Karla trabalha. O entendimento da Justiça para autorizar a redução da carga de trabalho da mãe é de que o não acompanhamento da responsável acarretaria em danos ao desenvolvimento da criança.

“Nosso entendimento é de que esse acompanhamento da filha é fundamental para o desenvolvimento dela. Embasamos isso com artigos do Estatuto da Criança e do Adolescentes (Ecriad), da Convenção do Direito da Pessoa com Deficiência, na Constituição Federal e também em teses e tratados internacionais”, esclarece Tironi.

A juíza que apreciou o caso considerou que o direito à manutenção da vida da criança e proteção da família é dever do Estado e precisa ser assegurado por intermédio do Judiciário.

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Para a gente que é mãe de criança deficiente, só ser mãe não é suficiente. A gente também precisa aprender a educar e ir na terapia para resolver certas questões do cotidiano. Esse foi um passo muito importante para o desenvolvimento da Vitória

Karla Bridi
Assistente administrativa
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No ambiente de trabalho, Karla diz que a decisão não criou qualquer desconforto. “Eu tive um retorno muito positivo dos colegas. Ninguém ficou com o sentimento de que era uma vantagem. É uma reflexão para as empresas de que liberar um funcionário para cuidar de um filho não é uma redução, porque a gente até trabalha mas não rende o que precisaria”, declarou.

A fisioterapeuta Daiana Pimentel, de 31 anos, foi outra mãe que pediu a diminuição de carga horária quando o filho dela, Richard, foi diagnosticado com autismo aos 4 anos.

“Junto com o diagnóstico, veio o encaminhamento para diversas terapias. Quase nenhuma disponível nas redondezas. Ficou difícil, cansativo e caro fornecer tudo aquilo, além de ter descontos no salário”, contou. No ano passado, Daiana ficou sabendo da lei federal e pediu que a prefeitura onde trabalha fizesse a redução do horário dela, mas a solicitação também foi recusada.

Daiana ingressou com ação no Judiciário, venceu em primeira instância, mas o município recorreu. A decisão dando ganho de causa para a servidora saiu neste ano.

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Noto hoje um Judiciário muito mais sensível e humanizado, que compreende as leis e seus valores, em especial sobre grupos em fragilidade social. Meu filho tem mostrado grande melhora, e esperamos por mais. Richard é um menino incrivelmente inteligente e apesar do autismo, que lhe causa algum prejuízo social, ele tem um potencial incalculável. O que me move é a possibilidade dele ser um adulto produtivo e independente

Daiana Pimentel
Fisioterapeuta
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O advogado previdenciário Rafael Vasconcelos. ( Reprodução/TV Gazeta)

DESAFIO NO SETOR PRIVADO

Apesar da importância para o desenvolvimento das crianças, a redução da jornada de trabalho de responsáveis que acompanham o tratamento é um desafio para profissionais do setor privado. Sem leis que regulamentem o tema, o advogado previdenciarista Rafael Vasconcelos diz que uma tentativa nesse sentido ainda pode apresentar risco de perda de emprego.

“Sem a efetiva criação de leis que tragam esse resguardo para os trabalhadores de forma mais ampla, não é possível a segurança jurídica concreta para o empregado. Nos casos em que o vínculo é mais longínquo e sólido, pode ser feita uma negociação com o empregado e é razoável a manutenção do vínculo. Os trabalhadores ainda podem recorrer ao Judiciário, que segue como acesso para a garantia desse direito em casos de extrema necessidade”, esclarece.

Apesar disso, como não existe lei, os trabalhadores que recorrem à Justiça não estão isentos de demissão.

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É um caso delicado para quem está no regime geral, porque o empregado não estará resguardado em uma lei para fazer o pedido. Em caso de demissão, o trabalhador pode recorrer por dispensa discriminatória e ser reintegrado à empresa, mas o que acontece, na prática, é um acordo entre empregador e empregado

Rafael Vasconcelos
Advogado
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Vasconcelos tem o mesmo entendimento sobre mães que têm o filho prematuro, ou como o de Luzia, que passou mais de três meses internado. Mesmo que seja garantido o direito na Justiça, a falta de leis específicas faz com que a mãe possa sofrer represálias da empresa após o retorno ao trabalho. Segundo uma pesquisa da Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV/EPGE) divulgada em 2017, metade das mulheres brasileiras fica desempregada um ano após ter filho.

ACOMPANHAMENTO É FUNDAMENTAL

Para o neurocirurgião infantil Thiago Gusmão, o acompanhamento dos pais ou responsáveis é extremamente relevante, principalmente quando se trata de crianças com alguma dificuldade ou limitação, seja ela auditiva, visual, na fala ou motora e até mesmo no caso de crianças que apresentam dificuldades múltiplas. “A presença e a participação do adulto na vida do filho irão contribuir bastante para o tratamento e o desenvolvimento dos pequenos.”

Gusmão observa que hoje muito se fala em coaching parental, um treinamento para que os pais aprendam técnicas, terapias e exercícios e repliquem em casa com os filhos. “É uma forma de estimulá-los e de incentivar ainda mais o desenvolvimento das crianças que possuem alguma dificuldade”, ressalta o médico.

O neurologista reforça que é importante que os pais estejam cada vez mais presentes na rotina dos filhos, independentemente do perfil da criança. E o fato de existir uma lei que permite que servidores públicos federais horário especial de trabalho, para cuidar do filho com deficiência, faz com que esses pais tenham uma oportunidade ainda maior de contribuir para o desenvolvimento da criança.

PROJETOS PARA AMPLIAR BENEFÍCIOS

No Congresso Nacional, há várias propostas para ampliar os benefícios. No final do ano passado, foi votado no Senado um projeto para aumentar o prazo da licença-maternidade para todas as mulheres, de 120 para 180 dias, e também permitir ao pai acompanhar a mãe nas consultas e exames durante a gravidez. Aprovado na Casa, o projeto foi encaminhado para a Câmara.

Outro projeto, em tramitação nas comissões, prevê a prorrogação do início da licença-maternidade e o período de recebimento do auxílio quando, após o parto, a mulher ou o seu filho permanecerem em internação hospitalar por mais de três dias.

Sobre a possibilidade de redução da jornada de trabalho para que pais de crianças com deficiência consigam acompanhar o tratamento, dois projetos de lei foram propostos no Senado. Um que reduz em 10% e outro em 50% a carga horária desses trabalhadores. A última, de autoria de Magno Malta , foi arquivada com o fim do mandato dele no ano passado. A primeira, de Waldemir Moka, segue em tramitação na Comissão de Assuntos Sociais.

LICENÇAS PELO MUNDO

O tempo da licença-maternidade ao redor do mundo varia de país para país. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) faz o levantamento desse tempo de afastamento por semanas. Segundo o ranking, em 2016, nove dos dez países com maior licença eram europeus. A média do tempo para a licença era de 19,1 semanas.

Brasil não está foi listado, mas o tempo legal corresponderia a 17 semanas.

Confira

Reino Unido – 52 semanas

Grécia – 43 semanas

Irlanda – 42 semanas

Eslováquia – 34 semanas

República Checa – 28 semanas

Israel – 26 semanas

Hungria – 24 semanas

Itália – 21,7 semanas

Estônia e Polônia – 20 semanas

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Suécia – 19,9 semanas

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