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Fies no Espírito Santo: mais da metade dos alunos com dívidas

Fies no Espírito Santo: mais da metade dos alunos com dívidas

Com crise e desemprego, pagamentos têm ficado para trás

Publicado em 4 de agosto de 2018 às 22:49

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Jéssica Oliveira está com prestações do Fies atrasadas. (Marcelo Prest)

O sonho de entrar em uma faculdade tornou-se realidade para muitos com a oferta do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), criado pelo governo federal com a perspectiva de facilitar o acesso ao ensino superior. Mas a possibilidade de pagar a mensalidade após a conclusão do curso esbarrou na crise econômica e no desemprego. No Estado, mais da metade dos que contrataram o financiamento estão hoje inadimplentes há pelo menos um dia.

Conforme dados do Sindicato das Empresas Particulares de Ensino do Espírito Santo (Sinepe-ES) de janeiro deste ano, 54% dos contratos de financiamento estudantil estavam em atraso. Embora não tenha indicadores mais recentes do Estado, o conselheiro e ex-presidente da entidade, professor Antonio Eugenio Cunha, acredita que esteja no mesmo patamar da inadimplência no país que, segundo o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), está em 61% entre os que estão em fase de amortização da dívida. “Todos os estados passam por essa situação. Qualquer variação que haja é na faixa de um ponto percentual, nada muito significativo”, aponta.

Burocracia

O consultor comercial Wellison de Castro Temido, 39, faz parte dessa estatística desde que parou de pagar o Fies, há cerca de cinco anos, quando ficou desempregado. Ele ainda levou dois anos para conseguir um novo trabalho com carteira assinada, porém as perdas já estavam estabelecidas.

“Ainda estou em processo de reconstrução financeira. Recentemente fui à Caixa (agente financeiro do Fies), em uma agência em Cariacica, mas disseram que eu deveria ir em outra, em Vila Velha, onde fiz meu contrato. Uma burocracia. Ainda não tive tempo de ir, mas quero negociar”, afirma .

A dívida de Wellison com o Fies chegou a R$ 9,8 mil e ele disse que somente terá condições de pagá-la se puder parcelar, e com prestações que caibam em seu orçamento. “Se exigirem algo diferente disso, infelizmente vou ter que continuar do jeito que está”, lamenta.

Além da inadimplência crescente, o número de contratos do Fies tem caído ano a ano, desde 2014, quando 14.831 estudantes aderiram ao financiamento no Estado. Em 2017, foram 3.682.

“A redução está diretamente relacionada às alterações promovidas pelo governo no Fies em 2017. Essas mudanças concluíram o processo de retirada do caráter social do programa, iniciado em 2015, quando houve drástica redução no número de contratos (de 732 mil em 2014 para 287 mil em 2015, no país)”, observa Sólon Caldas, diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes).

 “Fundamentadas na necessidade de ajuste diante da crise econômica e no suposto alto índice de inadimplência, as alterações conferiram caráter eminentemente fiscal e financeiro ao Fies, tornando-o inacessível aos estudantes”, completa.

Neste mês vence a segunda parcela do Fies de Jéssica Oliveira da Silva e ela já sabe que não vai ter como pagar. “A primeira prestação venceu em 10 de julho. Mas, no momento, estou pagando empréstimo, morando de aluguel, tenho outras despesas e não consigo acertar o Fies", disse a atendente de 25 anos.

"A prioridade era casa e comida"

Wellison de Castro Temido parou de pagar o Fies quando ficou desempregado. (Fernando Madeira)

Formado em Administração desde 2010, Wellison de Castro Temido, 39, viu-se sem condições de continuar pagando o Fies quando ficou desempregado. Hoje, cinco anos depois, a dívida chega a quase R$ 10 mil.

Qual foi sua dificuldade para pagar o Fies?

A ideia que vendem para nós é que, quando terminamos o curso, vamos ter uma carência para começar a pagar, que é um tempo para a estabilização profissional. Mas a estabilização não vem no mesmo prazo de carência que eles propõem. No período, em vez disso, me desestabilizei.

Você conseguiu pagar alguma parcela?

Sim, quando estava trabalhando. Depois, fiquei desempregado e parei.

Havia outras prioridades?

Sou casado, tenho dois filhos, pago aluguel. A prioridade era casa, comida. E hoje, mesmo após voltar a trabalhar, com a retração do mercado ainda não alcancei o estágio de remuneração que tinha antes. Quero pagar, mas a dívida está em R$ 9,8 mil e não dá para pagar de uma vez.

Novas regras devem permitir parcelamento em até 18 vezes

O cenário de inadimplência tomou proporções desmedidas na avaliação do governo que, além de implantar mudanças no início do ano para concessão de novos financiamentos, também decidiu adotar regras diferenciadas para renegociação e que devem passar a valer ainda neste semestre. A previsão é de parcelamento em até 18 meses.

Pelas normas vigentes, quem deve o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e quer colocar as contas em dia precisa pagar de uma só vez, segundo Pedro Pedrosa, diretor do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). “Isso não é uma renegociação”, admite.

Pedrosa, que atua na área de Gestão de Fundos e Benefícios, disse que um comitê gestor vai definir todas as regras de negociação que, de fato, permitam aos inadimplentes quitarem suas dívidas. Ele sustenta que em até 10 dias o grupo se reúne para tratar do assunto. O diretor do FNDE acredita que a medida vai ajudar a reduzir a inadimplência, bem como as alterações na forma de concessão do Fies.

“Foi feita uma análise do programa e o Tribunal de Contas apontou que ele era insustentável. Não temos estrutura financeira para arcar com esse gasto de 700 mil contratos por ano. A gente precisou reestruturá-lo com um custo que caiba no bolso do governo, e também atacar a inadimplência.

Quando começou, a previsão era de inadimplência de 10%. Esse percentual já superou os 50% e ainda vai aumentar, mas se as medidas fizerem reduzir para 25%, é um indicador aceitável, que vemos em outros países”, argumenta.

Pelo novo modelo, afirma Pedrosa, foram criados alguns redutores de risco de inadimplência, como a taxa de juro zero para até 100 mil contratos a estudantes de baixa renda, e o fim da carência de 18 meses.

"Quando era dado o prazo de um ano e meio sem pagar, mesmo se a pessoa tivesse renda, acabava retirando o pagamento da rotina financeira dela e, para retomar, ficava mais difícil.”

Na avaliação de Sólon Caldas, diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes), as novas regras podem piorar o cenário. “Isso porque além da redução das vagas, a divisão do programa em três modalidades, sendo duas geridas por bancos privados, dificultou bastante o acesso. Além disso, a taxa de juros cobrada pelos bancos seguirá as regras do mercado financeiro”, observa.

Além disso, segundo ele, a nova política do Fies manteve três dos principais gargalos que dificultam o acesso ao programa: o não financiamento de 100% do valor da mensalidade; a destinação de 60% das vagas para cursos prioritários definidos pelo governo; e o cruzamento da renda com a nota exigida no Enem.

Para Caldas, o Fies precisa retomar o seu objetivo original de ser uma política social de inclusão. “Precisa resgatar a sua essência e deixar de ser visto como política fiscal.”, finaliza.

Análise - Problema é estrutural

O Fies começou muito amplo e permissivo; não tinha muitas regras. Com o agravamento da questão fiscal e o estrangulamento das contas do governo federal, em 2015, foi necessário fazer uma reformulação para torná-lo sustentável. O ajuste era necessário porque, até então, era uma fonte de endividamento incontrolável. Por outro lado, significou para alguns estudantes a impossibilidade de financiar porque, além de ter ficado mais caro, nesse ínterim a recessão foi aumentando. Esses são motivos para a redução de contratos, mas para a inadimplência há outra explicação: como o Fies não tinha critérios, qualquer instituição tinha acesso, inclusive as de má qualidade que formaram pessoas sem capacidade para o mercado de trabalho. Assim, muitas não conseguiram emprego após se formar ou, quando conseguiam, a remuneração era menor do que se esperava. A inadimplência é um problema estrutural do Fies”

Arilda Teixeira - economista

Como funciona

Programa

O Fies é um programa destinado a financiar a graduação de estudantes matriculados em cursos presenciais pagos e com avaliação positiva no MEC. Para ter acesso, é preciso, entre outros critérios, participar de um processo de seleção e ter feito o Enem, com média nas provas igual ou superior a 450 pontos e, na Redação, mais do que zero.

Contratos

O pico no número de contratos ocorreu em 2014. Naquele ano, foram 14.831 no Estado e 732.672 no país. No ano passado, caiu para 3.682 e 175.961, respectivamente.

Novo Fies

São duas modalidades: a primeira é financiada com recursos da União e oferta vagas com juro zero para os estudantes que tiverem uma renda per capita mensal familiar de até três salários mínimos. Nesta, o aluno começará a pagar as prestações respeitando a sua capacidade de renda.

A segunda, denominada P-Fies, é destinada aos estudantes com renda per capita mensal familiar de até cinco salários mínimos. Ela funciona com recursos dos Fundos Constitucionais e de Desenvolvimento e ainda, de bancos privados participantes.

Dívidas

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Resolução do FNDE, publicada em junho, prevê que as dívidas poderão ser parceladas em até 18 meses. Além disso, foi fixado em 30% da parcela o valor máximo que poderá ser cobrado por mês. Ou seja, se um aluno atrasou o pagamento de uma mensalidade de R$ 100, ele poderá pagar até R$ 30,00 a mais junto com a próxima prestação. Essas regras precisam ser validadas pelo comitê gestor do FNDE.

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