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'Autismo não tem cura porque não é uma doença', diz especialista

"Autismo não tem cura porque não é uma doença", diz especialista

Para psicanalista que estuda esse transtorno há 15 anos, há muito preconceito com os autistas, que são, muitas vezes, tratados como idiotas e retardados

Publicado em 15 de setembro de 2017 às 21:42

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Falar sobre autismo é entrar num campo vasto cheio de perguntas sem respostas. O transtorno, marcado por um comprometimento sério na capacidade que a pessoa tem de se relacionar com os outros, é visto como um enigma ainda por médicos e especialistas das mais variadas áreas. Para os pais, então, o autismo é mais que isso, é um mundo desconhecido que se abre e do qual não se sai nunca mais. “O autismo não tem cura porque não é uma doença, é um jeito de ser, um modo de viver”, explica a psicóloca e psicanalista Bartyra Ribeiro de Castro, com a experiência de quem pesquisa o tema há 15 anos e coordena, em Vitória, o Pipa (e rabiola): Projeto de Investigação Psicanalítica do Autismo. Nesta entrevista, ela ressalta a importância de se ter um olhar delicado sobre esse problema tão complexo e sobre como lidar com a singularidade do autista na família, na escola, na sociedade.

O que caracteriza o autismo?É uma pergunta complicada. Tenho muito medo de oferecer elementos que acabem estigmatizando crianças. Mas podemos dizer assim: se você percebe que seu filho tem uma dificuldade de trocar olhares, de desenvolver a linguagem, procure um profissional para diagnosticá-lo. Isso não quer dizer que ele seja autista. Mas o autismo tem uns sinais. É muito caracterizado, a rigor, por uma não troca de elementos fundamentais de laços sociais. E o que são esses laços sociais? No bebê, por exemplo, é não olhar para o pai, para a mãe. É não balbuciar palavras, fazer uma retenção excessiva das fezes.A criança autista dá esses sinais desde os primeiros anos de vida?Quando a gente analisa alguns autismos radicais, vemos que já havia dificuldade nas primeiras trocas, desde muito pequenininho já se podia perceber isso. Um traço muito comum de se ver é uma criança que parece que está se desenvolvendo normalmente e, de repente, ela se cala. E, ouvindo os pais, a gente constata que ela dava sinais antes deste calar-se. Mas não é qualquer não troca de olhar. É um conjunto que sinais que só os profissionais sabem ler.Podemos afirmar, então, que diagnosticar uma criança com autismo é muito difícil...Sim. E o mais grave do diagnóstico mal feito é o risco de não se oferecer o tratamento adequado. Se ela é autista, ela vai se desenvolver dentro de uma linha de tratamento. Se tem uma criança não autista tratada como se fosse, ela não vai dar tudo que ela poderia dar se ela fosse tratada como ela é. Ou o contrário: se se toma uma criança como não autista e deixa de oferecer as possibilidades de tratamento, ela não vai dar tudo que ela poderia dar se fosse tratada como autista. Por isso, o diagnóstico é muito delicado. Estamos falando de crianças. Isso é de uma responsabilidade imensa. São vidas inteiras, não um misto de letras num código de doenças!Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, os autistas são cerca de 70 milhões de pessoas no mundo e dois milhões no Brasil...Sabemos que o diagnóstico de autismo aumentou 500% nos últimos anos. A nova classificação internacional colocou o espectro autista num leque que inclui até a psicose infantil. De repente, tudo parece autismo. Cabe um monte de gente. Será que toda criança que se balança é autista? Toda criança que se emudece é autista? Vamos devagar aí. Estamos vendo uma epidemia de autistas. Ou será que há uma epidemia de diagnósticos?A respeito disso, como você vê a lei, sancionada este ano, que obriga os pediatras do SUS a adotarem protocolos padronizados para avaliar riscos para o desenvolvimento psíquico em crianças?A gente vê com muita preocupação. Há uma movimentação imensa ainda sendo feita. Associações de profissionais estão se mexendo. Há pediatras até se mobilizando contra isso, porque pela lei eles serão responsáveis por diagnosticar o autismo, por exemplo. Muitos não querem, pois não têm formação para isso. O problema é a etiquetação de crianças, o diagnóstico equivocado. Imagina o efeito disso daqui a 10, 20 anos! Crianças etiquetadas são crianças reféns da medicalização.O que a medicina já sabe sobre o autismo? A tese de que tem origem genética já caiu por terra?Existem pesquisas, mas não há nada comprovado de que seja genético. Os próprios geneticistas dizem que isso não é cravado. Tem indícios. Acreditamos, os psicanalistas, que seja algo que se dá na entrada da linguagem, nos primeiros contatos de socialização dessa criança que, por alguma razão que a gente desconhece, não troca. Ela faz uma barreira. Aí vêm mil teses. Sabe-se também, por exemplo, que atinge mais meninos que meninas. Não se sabe muito além disso.O autismo, então, também não é uma doença?Não é uma doença. Por isso, não tem cura. Ouvir isso, para alguns pais de autistas, é muito duro. Mas, se não é uma doença, podemos dizer que é um jeito de ser, um modo de viver. Nós só temos que compreender e tentar encontrar uma forma de entrar naquilo que ele está dizendo que é sua forma de ver o mundo. Isso exige uma delicadeza. É preciso um olhar fino sobre um filho que se recusa, em sua estrutura psíquica, a fazer um laço social como os outros. Mas ele está disposto a fazer algum laço social, algumas vezes... Agora qual? Como? Essa exigência que o autista faz a quem trata e lida com ele é trabalhosa, é de uma vida inteira.Para os pais com certeza é muito duro esse diagnóstico...O que mais temos lido nos escritos de pais de autistas é um exercício de quebra de ideais. Depois, como conhecer aquele filho, que não é como projetaram. Quem é esse filho? E essa é uma pergunta que se deve fazer, na verdade, a todos os filhos. Mas o autista nos impõe isso. Esses pais terão que suportar que o filho nunca será autônomo, mas, talvez, independente, com alguma independência...

A visão que a maioria das pessoas ainda tem do autista é daquele ser totalmente incapaz, que vive num mundo à parte, desconectado da realidade?

Há todo um preconceito, que toma todos os autistas como idiotas, como retardados. Isso é um desastre! Existem autistas de alta competência, que são doutores em universidades, escritores, matemáticos, físicos. Tem uma autista muito conhecida, a Temple Grandin, que é responsável pelos inúmeros abatedouros do Canadá ao norte dos Estados Unidos. Ela desenhou as plantas dos abatedouros vendo-os do ponto de vista da vaca. Só uma autista poderia fazer aquilo. E ela roda o mundo fazendo palestras sobre os abatedouros. A qualidade de carne é outra!

É possível, em alguns casos, trazer o autista para mais próximo de um convívio normal?

A gente pensa o autismo um pouco assim: alguém que construiu uma fortaleza entre ele e o mundo. Cabe a nós tentar olhar quais foram os buraquinhos que eles deixaram de contato conosco, os fachos de luz... Não podemos entrar como uma britadeira em cima deles. O autista já criou uma muralha. Se você entrar com artilharia pesada, ele vai fazer o quê? Vai fechar mais a muralha para se defender, ou pior, fechar-se nos porões. E aí, o perderemos por mais um tempo. O que eu chamo de “artilharia pesada” é a ideia de que, frente a um diagnóstico, se impõe aos pais uma lista de terapias e intervenções que podem até ser úteis para alguns, mas que não podem der regras para todos.

Como as escolas lidam hoje com o autista?

Existe uma lei de inclusão social. Mas cadê a estrutura? O professor não tem formação para acolher esse aluno. Como controlar uma turma de 30 crianças com um adolescente falando sozinho? Não adianta vir com um método de ensino para todos. Não vai funcionar para ele. Por isso, estamos investindo pesado na formação de professores. É lá que pipoca a coisa. O lugar do autista é na escola sim, mas do jeito que ele dá conta. Outro dia, um professor me relatou que passou um ano inteiro com uma criança autista para que ela suportasse entrar na sala. No ano seguinte, ela teve que mudar de sala porque tinha que passar de ano. Quem disse que ela tem que passar de ano? Para ela, entrar na sala era o maior avanço! Imagina como foi difícil! Para o autista, a necessidade da imutabilidade está posta. Ele não suporta o inesperado. No caso desse aluno, o trabalho foi todo jogado no lixo. É preciso que haja políticas públicas que acolham essas crianças. Elas podem aprender, mas dentro suas habilidades.

Os autistas têm muito a dizer?

Claro! Uns não falam, mas dão sinais. Muitos até falam, mas têm um traço na fala, que é uma fala de signos. A gente diz: “Nossa, tomei um chá de cadeira!”. Para eles, é de fato um chá de cadeira. Eles não entendem a metáfora. É muito delicado o acompanhamento de um autista. Não podemos esperar tanto. Ou devemos esperar que ele traga o que puder trazer. Esse tratamento a psicanálise está se oferecendo para capitanear, porque faz essa escuta mais delicada. O autista vai se expressar. Estamos aprendendo muito as autobiografias deles, onde eles dizem o que e como é seu mundo, o que é seu laço social restrito, seus hábitos, seus costumes. São pessoas altamente capazes, mas que não querem fazer laços. E não é porque não gostem, mas porque não dão conta. Temos que entender que o autista não vai dar conta de se relacionar como nós, não vai dar conta de trabalhar como nós, mas vai fazer isso do jeito dele. Dentro daquela caixa ali, tem um sujeito pensante, num mundo incrível, que basta a gente ter disposição de tentar entender.

Como ajudar o autista?

Os tratamentos, em geral, são muito voltados para treinamento. Claro que você pode ensiná-los a cumprimentar as pessoas, porque isso pode ajudá-los socialmente. Claro que tem que ensiná-los a comer. Isso é válido! Fazemos isso com nossos filhos. Mas para o autista não existe “o” tratamento. Tem que ver quais os melhores tratamentos para ele. Exigir de uma criança que não faça seus movimentos corpóreos porque a sociedade não aceita? Tem uma gama de terapias com possibilidades. Não precisa descartar nenhuma delas. Mas o tratamento para Pedro não é o mesmo para Maria. Queremos salvaguardar a singularidade de cada criança autista, para que elas sejam vistas como únicas. Para que a gente não faça com elas exatamente aquilo do que elas estão se protegendo: uma invasão.

Pipa e Rabiola: pesquisa e formação de professores

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Fundado há cerca de cinco anos, em Vitória, como parte de uma Oscip, o Projeto de Investigação Psicanalítica do Autismo - Pipa (e rabiola) reúne especialistas para pesquisar o tema em sua profundidade. Atua ainda no Rio de Janeiro (na capital e em Teresópolis) e em Campina Grande (PB). Coordenado em Vitória pela psicanalista Bartyra Ribeiro de Castro, funciona também como um programa em parceria com prefeituras e com instituições de ensino públicas e privadas formando professores para acolher as crianças autistas. O Pipa também realiza atendimentos gratuitos a autistas, mas apenas voltados para pesquisa.

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