Enquanto boa parte das crianças ocupam o tempo livre com vídeos e jogos de celular, Kaíque Turra, de 9 anos, prefere outras maneiras de se divertir: na rua, na praia, na lama, com os bichos e até mesmo capturando algumas espécies de uma maneira inusitada. Criado em Vila Velha, ele aprendeu desde cedo a escalar pedras, pegar tatuí na areia e correr atrás de lagartixa.
“Celular eu tenho, mas não uso muito. Gosto mesmo é de brincar”, contou enquanto olhava atentamente para o oceano, ansioso com o fim da entrevista para dar um mergulho – o mar, aliás, é personagem central nesta história e na vida do garoto.
No bairro onde mora, na praia de Itapuã, ele é conhecido como o menino que anda descalço e sobe o Morro do Moreno como se fosse um passeio dominical em um shopping na vida de uma criança de férias. Ele gosta tanto da atividade que ano passado o presente escolhido por ele e a mãe, Marcela Brandão, para presentear a avó dele no Dia das Mães, foi justamente uma "aventura" em um dos principais pontos turísticos canela-verde.
Na vizinhança, ele também ganhou um apelido carinhoso: Kurumim — palavra de origem tupi que significa "criança". “Me chamam assim porque eu fico muito no mato, na rua, gosto de natureza”, afirma. Para os amigos e vizinhos, Kaíque é aquele que representa a infância vivida como antigamente, com pés sujos de terra e cabelo salgado pela água do mar.
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CONEXÃO COM O MAR

A praia faz parte da rotina de Kaíque, como se fosse o quintal de quem cresce numa cidadezinha do interior. Desde pequeno ele aprendeu a entender as mudanças das marés, a textura da areia, o cheiro do sal e a conviver com os peixes. Quando perguntado sobre como começou a se divertir no mar, ele nem soube dizer: "Desde que aprendi a brincar".
As memórias mais antigas já estavam misturadas à água salgada e à brisa incessante. Para quem nasceu em cidades afastadas do litoral, essa ligação pode parecer incomum. Para Kaíque, porém, é o jeito natural de ser e crescer.
A relação com os animais marinhos surgiu com a naturalidade da vida ao ar livre, geralmente na praia. Espécies de peixes como corvina, badejo, garoupa, dourado, pargo, peroá e o marlim-azul fazem parte do cotidiano de muitos capixaba, seja pela pesca esportiva ou como opção na tradicional moqueca.
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NÃO É HISTÓRIA DE PESCADOR
Morar próximo ao mar significa mais do que lazer: é também um modo de ganhar a vida. A proximidade com a Colônia de Pescadores de Itapuã ajudou Kaíque a transformar essa atividade em um objeto de admiração. Foi assim que surgiu um dos passatempos mais curiosos do menino: pescar, mas de uma forma pouco convencional. No lugar de redes, varas com molinete ou tarrafas, ele utiliza as próprias mãos.

Um vídeo gravado pela avó mostrando o neto correndo pela areia com um peixe em mãos — capturado por ele mesmo – chamou atenção de quem estava no local. Os presentes o aplaudiram após ele sair do mar diversas vezes com diferentes pescados. Perguntado sobre como aprendeu a pescar de maneira tão inusitada, ele relembra: “Foi aqui mesmo”, disse, olhando para o mar. Ele conta que tudo começou ao observar dois meninos segurando peixes na beira da água.
Kaíque Turra
Criança "raiz"
"Eu tentei e consegui, mas antes eu ia lá na Praia da Costa, que tem aquelas fendas de pedra. Algumas vezes pegava com a mão os peixes que ficavam presos"
Mas o que acontece com os peixes que captura? Segundo ele, a resposta vai da quantidade pescada: “Depende, se pega pouco, devolvo, mas se for muito, leva (para casa)”, explica.
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FAMÍLIA

Um comportamento tão fora do comum para a maioria das crianças atuais certamente tem raízes em algo maior. Em um cenário em que os incentivos externos, por questões de segurança, deixam meninos e meninas trancafiados no próprio quarto, foi no ambiente familiar que surgiu o incentivo e estímulo à liberdade, à curiosidade e ao modo de vida aventureiro.
Para que Kaíque se aventure no mar, na rua e na natureza, é preciso que alguém mostre e participe dessa "fuga" e, mais que isso, ofereça o suporte necessário para que essas experiências sejam feitas com segurança.
É aí que entra em cena Marcela Brandão, mãe de Kaíque. Aos 38 anos, tatuadora e praieira, ela é peça fundamental para que o filho crescesse mais conectado com o mundo real do que com o virtual.
“Na verdade, acho que forcei a não usar (tela) porque nunca concordei com criança com a cara enfiada no celular”, afirma. Para ela, ver o filho com o telefone na mão é motivo de incômodo. “Eu fico agoniada só de ver, então eu não deixo, nunca deixei”, explica.

Marcela Brandão
Tatuadora e mãe
"Quando a criança não fica muito em tela, ela acaba se forçando mais. Daí fica criativo, caçando coisa para fazer"
Conversando com Kaíque e Marcela percebe-se, de imediato, uma relação marcada por confiança, amor e parceria — muito além do vínculo tradicional entre mãe e filho. Eles são amigos e companheiros de aventura. “A gente fecha junto na praia. Vai para Barra do Jucu, Praia da Sereia, Setiba, subimos o Morro do Moreno, faz trilha”, conta Marcela. Ela não só incentiva, como participa ativamente das aventuras do filho. “Eu acho bacana e levo os amigos deles juntos”.
O amor entre mãe e filho não se expressa somente no olhar ou na maneira como um fala do outro. Marcela, como uma boa tatuadora, marcou o sentimento na pele, com uma tatuagem em homenagem a Kaíque.

Para o menino, ter esse incentivo dentro de casa foi essencial para despertar e alimentar a paixão pela natureza. E ele fala sobre isso feliz da vida. “Tenho vários amigos do meu prédio que vão comigo, mas minha mãe é minha parceira favorita de ir à praia”, afirma com um sorriso.
Entretanto, a habilidade de Kaíque com os peixes parece ser apenas uma parte das atividades manuais. O menino lida com naturalidade, garante a mãe. “Ele gosta de pegar os bichos todos na mão”, conta Marcela, rindo.
E, mais uma vez, a mãe tem papel fundamental nessa história. Desde pequeno, o jovem aventureiro aprende com a mãe como pegar os bichinhos. “Minha mãe tinha ensinado a pegar aqueles lagartos de parede. Aí pegava, fazia tipo uma forca. Como ele não se importava, colocava no pescoço dele. Pegava e soltava depois”, relata o menino.
Seja no mar ou em casa, Marcela se beneficia do talento do filho, e tira "vantagens" desta habilidade. "Quando aparece bicho em casa, peço para ele pegar”, contou brincando.
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