O dia chega ao fim, e a moradora da pequena casa, no extremo Norte do Espírito Santo, acende as velas para começar a preparar o jantar. Na mesa próxima, seu neto, Lorenzo, de 8 anos, aproveita a pouca iluminação para concluir o dever de casa. É no escuro que a família se alimenta. Na casa, não há acesso à energia elétrica.
“Já tem muito tempo que moramos aqui e não temos energia”, desabafa Ailza Maria Silva Nascimento. Ela e a família vivem em Carapina, comunidade localizada em Pedro Canário, a poucos quilômetros da divisa com a Bahia. Lá, moram cerca de 37 famílias, das quais 11 não têm acesso à energia elétrica.
Em suas casas, mesmo tendo eletrodomésticos como freezer, geladeira e televisão, nada pode ser usado. Ou, então, funcionam precariamente. A comida precisa ser consumida no mesmo dia; o banho é frio; a roupa é lavada na mão; e o celular é carregado com uma gambiarra feita com baterias de carro.
Um cenário inacreditável em pleno 2023, quando o Estado já lança mão de fontes renováveis de energia, como a solar e a eólica, enquanto ainda submete alguns moradores a uma vida sacrificada.
“É ruim demais! Descongela tudo e as coisas estragam no freezer e na geladeira, ficam em uma situação precária”, relata Vanusa de Brito Farias, 49 anos, cuja casa depende de iluminação fornecida por seu irmão. “Quando dá problema, ficamos dias sem luz”, conta.
Por lá, até a torre de internet usa placa solar, que nem sempre funciona. “Com o sol, nós temos internet. Com chuva, não temos”, destaca o produtor rural Vilmar Barboza Nascimento, 63 anos.
Fazenda antiga
A comunidade surgiu, segundo a Prefeitura de Pedro Canário, a partir de uma antiga fazenda. Com o tempo, a terra foi sendo vendida. Mas, como o inventário é caro e ainda não foi concluído, a maioria não possui a escritura dos imóveis.
Sem o documento, a empresa que fornece o serviço de energia, a EDP, não aceita os pedidos de instalação. O fato criou uma situação inusitada: parte da comunidade tem acesso à energia, enquanto outra, amarga a ausência do serviço.
Além dos primeiros moradores, só têm energia os que conseguiram fazer uma extensão de rede. Foi o que fez Claudio de Jesus Cordeiro, 54 anos, nascido e criado na terra. Há 20 anos, ele conseguiu o fornecimento. “Fiz uma extensão do meu pai. Na época, paguei R$ 5 mil, um aperto danado. Já meu irmão está há quatro anos na luta”, afirma.
Cabos nas plantações
A solução encontrada foi o “empréstimo” de energia por cabo. Com isso, quem caminha pela região encontra vários cabos, alguns com 20 a 30 metros, cortando as plantações. São os caminhos feitos pelas ligações clandestinas. Chama a atenção o fato de estarem ao lado da rede da empresa que fornece o serviço na região, a EDP.
“Eles não atendem a pequenos. Quando é feito o pedido, cobram uma fortuna, cerca de R$ 25 mil, para ligar a uma distância de 50 metros. O pobre não aguenta pagar. Mas a gente tem que se sujeitar a isso para não ficar no escuro”, relata o pequeno produtor Vilmar Barboza Nascimento, 63 anos.
Há até os que chegaram a instalar padrão para medição do consumo de energia em suas propriedades, por orientação da empresa, mas estão há anos aguardando a ligação. Um deles é o pequeno produtor Ezequiel de Jesus Santos, 42 anos, cujo equipamento foi fincado nas terras em 2016. “Nunca vieram instalar”, relata.
Outro que também possui um padrão é Joel de Jesus Cordeiro, 58 anos, que vive na região há 40 anos. Ele herdou a terra da mãe e vendeu partes para outras pessoas, todas sem acesso à energia. “O padrão está fincado do jeito que pediram. Há três anos aguardo a instalação”, conta.
Vida sacrificada
Nas casas das famílias sem luz, eletrodomésticos que são o desejo de consumo de muitos permanecem em caixas, envelhecendo, enquanto aguardam o dia em que poderão ser utilizados.
“A geladeira, que fica fechada o tempo todo, está limpa, mas fica fedendo. Vai acabar o gás (da geladeira) sem a gente usar, porque não tem energia”, conta Ailza Maria Silva Nascimento.
Até o sonho da casa própria precisou ser adiado. Durante a pandemia da Covid-19, Cristina Anacleto de Sales Valentim, 41 anos, ficou desempregada e decidiu viver no interior. Conseguiu construir sua casa, mas a obra está paralisada há mais de um ano por falta de energia.
“Não tem como fazer o trabalho de acabamento da casa. Precisa de maquinário, iluminação, principalmente no lado interno da obra, que fica escuro. Então, precisa de iluminação boa para fazer um reboco legal e colocar o piso. Sem energia, não tem como, infelizmente”, relata Cristina, que vive de favor com a família na casa de um primo.
Até o poço artesiano, cavado em frente a sua nova casa, não pode ser usado. “Aqui, eu tenho um poço artesiano, com 100 metros de profundidade e vazão de 5 mil litros de água por hora. Porém não utilizei nem uma gota dessa água por falta de energia. Isso porque não tem como usar uma bomba para puxar a água, do lado da minha casa.”
Sem contar os problemas com a proliferação de escorpiões, que aproveitam a época quente e invadem as casas. “A luminosidade espanta esses animais, mas como não temos… À noite, a gente tem que dormir de cortinado e enfiar tudo embaixo dos colchões, correndo o risco de encostar no escorpião. Já fui picado várias vezes”, relata Vilmar Barboza Nascimento.
Plantações secas
A maior parte dessas famílias é de pequenos produtores rurais que lutam para evitar que suas plantações sofram com a seca por falta de irrigação. Já instalaram os equipamentos para irrigar a lavoura, mas a bomba não consegue puxar a água por falta de energia.
“Está tudo montadinho, mas não tenho como tocar a minha irrigação porque não tenho energia”, conta Ezequiel de Jesus Santos, 42 anos. Sua roça de cacau é molhada à mão. As bananeiras estão escoradas, morrendo secas. Ele ainda mostra as mais de 800 estacas que aguardam o plantio de pimenta-do-reino.
“Estas estacas estão há quase um ano, fincadas aqui, e eu não consigo plantar pimenta. Estaria colhendo neste ano”, conta Ezequiel, que estima seu prejuízo em mais de R$ 30 mil.
Na região, há várias casas fechadas. São famílias que foram embora para outras cidades. Uma delas plantava hortaliças, segundo Vilmar. “Plantava nesta área todinha e colhia tanto... Fazia R$ 1 mil por semana em horta. Tinha um bico de energia que foi cortado. Eles abandonaram a área e foram trabalhar para os outros.”
Uma vida sacrificada que eles não sabem quando poderá ser mudada. “Nós precisamos de mais atenção no campo, de empresas que coloquem energia para os pequenos, para que eles possam sobreviver. Sem energia na roça, a gente não vive”, desabafa Vilmar.
O que dizem a prefeitura e a EDP
Por nota, a Prefeitura de Pedro Canário informou que a Fazenda Carapina está localizada em área rural, a 22 quilômetros da sede do município.
“Por serem propriedades rurais, o município não tem relação direta com a ligação de energia, pois essa negociação cabe aos proprietários junto à companhia de energia (EDP). Caso os proprietários precisem de alguma ajuda no entendimento das necessidades, o município se coloca à disposição através da Secretaria Municipal de Agricultura para quaisquer esclarecimentos”, informa o texto.
A EDP, também por nota, disse que enviou um técnico à comunidade e acrescentou que os clientes foram orientados a obter a documentação de suas propriedades. De posse dos documentos, poderão “dar prosseguimento aos pedidos de instalação”, informou a empresa.
Esperança por dias melhores
Apesar da demora e da pouca expectativa de solução para a falta de fornecimento do serviço, Ailza Maria não perde a esperança de que um dia a situação irá mudar.
Ao lado de sua máquina de lavar ainda embalada, ela lembra das dores na coluna, que poderiam ser evitadas se o equipamento estivesse funcionando.
“É triste você ver uma coisa tão linda desta na embalagem. Um presente que você ganhou e não pode usar. Mas espero em Deus que a energia vai vir. Estou confiada no Senhor.”
Vida sem luz
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