Winy Fabiano conta que, durante muito tempo, achou que tinha algo errado com ela por ser tão preterida afetivamente
Winy Fabiano conta que, durante muito tempo, achou que tinha algo errado com ela por ser tão preterida afetivamente. Crédito: Fernando Madeira

A solidão da mulher negra no amor, na maternidade e no mercado de trabalho

Rejeição nas relações afetivas, oportunidades negadas e dificuldade de ascensão social marcam as trajetórias das mulheres negras

Tempo de leitura: 14min
Vitória
Publicado em 22/11/2020 às 09h22

Sozinha, uma mulher negra sustenta uma família inteira. Sozinha, uma mulher negra não é considerada "mulher para casar". Sozinha, uma mulher negra consegue uma rara oportunidade em uma grande empresa. Embora o assunto ainda não seja amplamente debatido, a solidão é uma realidade para muitas mulheres negras: seja nas rejeições que sofrem nas relações afetivas, nas oportunidades negadas ou ao perceberem que são as únicas a ocuparem um cargo de destaque.

Quase sempre preteridas, dificilmente preferidas, mulheres negras possuem o primeiro contato com a solidão quando ainda sequer são mulheres. Basta conversar com algumas delas sobre a infância para escutar relatos traumáticos sobre as então inocentes festas juninas, por exemplo. Antes mesmo de aprenderem a ler e escrever, meninas pretas precisam aprender a conviver com a frustração de serem rejeitadas de forma repetitiva todos os anos por colegas de escola.

Na adolescência, enquanto observam meninas brancas iniciando os primeiros namoros, meninas negras são escolhidas apenas nos concursos da "garota mais feia da sala" ou são constantemente colocadas somente na posição de "amigas". Algo que se repete na vida adulta, mesmo que de forma velada. De início, pode parecer apenas coincidência. Mas com o tempo e com as repetições de casos, percebem que são vistas apenas como mulheres para relações sexuais e não para relações afetivas.

O MITO DO "AMOR NÃO TEM COR"

Embora muita gente levante a bandeira de que "o amor não tem cor", especialistas explicam que esse argumento nega que a solidão da mulher negra é algo real e, assim, evita que o tema seja debatido. Para as profissionais entrevistadas por A Gazeta nesta reportagem, a ideia de que a cor da pele não influencia na escolha das relações afetivas é muito bonita, mas cai por terra quando entendemos que as preferências individuais fazem parte de uma construção social. E a sociedade, vale lembrar, é racista.

A solidão afetiva da mulher negra fica ainda mais visível, por exemplo, se essa mulher for de pele retinta, tiver cabelos crespos ou for gorda. A empresária e educadora social Winy Fabiano, que é uma das criadoras do coletivo Mulheres Unidas de Caratoíra (MUCA), conta que, durante muito tempo, achou que tinha algo errado com ela por ser tão preterida afetivamente. Depois, conseguiu entender que a rejeição e o fetiche dos corpos negros são reflexo da escravidão, quando a mulher negra era estuprada por homens que a viam como objeto sexual - como alguém "da cor do pecado", feita apenas para o "sexo sujo" e proibido.

"A mulher negra é o tipo de mulher que o homem dificilmente quer assumir perante a sociedade. Eu passei por um processo para entender que o problema não estava comigo. É só olhar nosso contexto histórico para ver que a luta da mulher negra é completamente diferente da luta da mulher branca. Enquanto mulheres brancas lutam por direitos, mulheres negras ainda lutam para serem vistas como gente. Não tivemos representatividade, desde cedo fomos rejeitadas, tivemos o nosso corpo sendo alvo de apelidos, sofremos com objetos de tortura como o pente quente na tentativa de sermos aceitas. Enquanto minhas amigas brancas estavam namorando, eu sequer tinha beijado alguém", lembra.

Winy Fabiano

Empresária e educadora social

"E desde que iniciei minha vida sexual, a pessoa sempre queria ficar comigo escondido. Até que um dia resolvi rejeitar todas as relações desse tipo, aí a solidão foi ainda maior"

Winy lembra que, até mesmo em um relacionamento que parecia mais sólido, ela foi apresentada para a família do companheiro como uma amiga. E a rejeição, segundo ela, parte não apenas dos homens brancos, mas também dos negros, principalmente quando alcançam sucesso e decidem mostrar esse poder tendo relações afetivas apenas com mulheres brancas. Além disso, a educadora social acredita que a falta de representatividade nas mídias e espaços privilegiados influencia ainda mais para que as pessoas não enxerguem beleza nos negros. Ela conta que não é a única mulher negra a ter essa percepção da solidão. À frente do MUCA, já ouviu dezenas de relatos semelhantes.

Data: 19/11/2020 - ES - Vitória - Dia da consciência negra - Editoria: Cidades - Foto: Fernando Madeira - GZ
Maioria nas periferias, a mulher negra pobre está, muitas vezes, sozinha na missão de chefiar a casa e educar os filhos. Crédito: Fernando Madeira

CHEFE SÓ DO LAR

Muito além das questões afetivas, a solidão é reforçada também em outras posições sociais. Maioria nas periferias, a mulher negra pobre também está sozinha na missão de chefiar a casa e assumir a educação dos filhos, sem apoio. As histórias que resultaram nessa solidão são diversas. Vai desde a mulher que nunca foi assumida afetivamente pelo companheiro e engravida nesse contexto, até aquelas que foram abandonadas logo após anunciarem a gravidez. Sozinhas e com dificuldades, elas criam os filhos, sustentam todas as despesas da casa e, muitas vezes, continuam com essa responsabilidade na criação dos netos também.

Para Winy Fabiano, a solidão da mulher negra periférica na criação de filhos e netos, sem qualquer suporte dos pais daquelas crianças, muitas vezes acaba resultando em outro grave problema: a entrada da juventude no tráfico de drogas. Pois mulheres que passam o dia inteiro fora trabalhando para conseguir sustento sozinhas, muitas vezes cuidando dos filhos de outras pessoas, acabam não conseguindo estar presentes na criação dos próprios filhos.

"As pessoas não têm noção do quanto a solidão da mulher negra tem relação com a entrada da juventude no tráfico de drogas. São mulheres que precisam sair cedo de casa para trabalhar, que sem a opção de deixar as crianças em uma boa creche com horário integral, acabam deixando com outras pessoas. Quem fica com essas crianças? Quem educa? Quem cria? E principalmente, como cria? ", questiona.

Quem viu de perto mulheres negras chefiando famílias sozinhas, foi o bailarino, coreógrafo e disseminador da cultura Bantu, Paulo Cesar Fernandes, de 63 anos. Filho de Laura Felizardo, uma mulher negra e mãe-solo, ele cita a própria história de família para mostrar como meninas pretas são preteridas desde muito cedo. Laura nasceu em 1928 no Morro do Feijão, em João Neiva, filha de uma costureira e um lavrador. Grande admiradora da mãe, a viu ir embora após ela descobrir que o marido tinha outra família. Sofrendo constantes violências da madrasta, Laura e os cinco irmãos foram entregues a famílias tradicionais do Espírito Santo. Com apenas 9 anos, passou a trabalhar na casa de um comerciante de Colatina em troca de comida e lugar para dormir.

"Com 9 anos ela trabalhava arrumando a casa, sem receber por isso. Um dia a cozinheira faltou e minha mãe ficou com essa função, tendo que subir em um caixote para alcançar o fogão. Foi quando ela descobriu a cozinha como uma salvação. Era o momento que ela se conectava com a mãe, que tanto admirava, e uma forma de sair de outros trabalhos. Como o comerciante tinha problemas com bebida e a mulher dele era acamada, minha mãe teve que chefiar aquela família muito cedo para sobreviver. Ela coordenou a casa por algum tempo e aos 15 anos decidiu se mudar para Vitória. Inicialmente trabalhando na casa de parentes da última família com quem viveu, logo depois passou a atuar como empregada doméstica em outras casas da Capital", conta.

Nesse contexto, Laura teve três filhos. Porém, nunca foi assumida por nenhum homem com quem se envolveu - nem como companheira afetiva, nem nas responsabilidades com os filhos. No caso do pai de Paulo, por exemplo, Laura achou que tinha uma relação sólida. Mas, só após ele morrer precocemente por infarto, descobriu que ele tinha outra família e que ela, na verdade, era amante. Sem condições de criar as crianças recebendo tão pouco e vivendo em locais vulneráveis, precisou pedir ajuda para outras pessoas. Paulo foi criado por uma parteira húngara que atuava em Vitória, junto do marido. Com o casal, que ele considera seus avós, teve acesso aos estudos. Mas aos 17 anos decidiu ir morar com a mãe para que ela não ficasse sozinha nunca mais.

O bailarino e coreógrafo Paulo Cesar Fernandes ficou conhecido por sempre acompanhar a mãe, Laura Felizardo pelas ruas de Vitória
Paulo Cesar Fernandes ficou conhecido por sempre acompanhar a mãe, Laura Felizardo, pelas ruas de Vitória. Crédito: Acervo pessoal

"Diferente dos meus irmãos - que não tiveram contato com minha mãe, quando cresci, fui ficar com ela. Assim como ela entendeu a própria mãe que saiu de casa ao ser abandonada pelo marido, eu a entendi por ter que nos deixar com outras famílias para trabalhar. São mulheres negras, sozinhas, que nunca tiveram muitas escolhas. Aos 17 anos fui morar com ela e ficamos juntos até o último dia de vida dela, aos 92 anos, em junho de 2020. No início, foi difícil. Minha mãe não falava. Devido os traumas, ela tinha dificuldades e até gaguejava. Eu a influenciei muito para que ela conseguisse se expressar. Ela foi pegando confiança em mim e eu fui entendendo que ela era uma mulher que sempre foi escolhida pelos homens apenas para sexo, nunca para afeto", explica.

Após uma vida inteira sofrendo com a solidão da mulher negra, o fato de dona Laura passar a ser vista sempre acompanhada de Paulo chamou a atenção de quem frequentou o Centro de Vitória nos últimos anos.

Paulo Cesar Fernandes

Bailarino, coreógrafo e disseminador da cultura Bantu

"As pessoas até nos paravam nas ruas, emocionadas com nossa parceria. Primeiro, pelo carinho forte que existia entre nós dois. Mas também acredito que muito desse espanto tinha a ver com o fato de não estarmos acostumados a vermos mulheres negras sendo assistidas, acompanhadas e recebendo afeto"

SOLITÁRIAS NO AMBIENTE CORPORATIVO

A solidão da mulher negra também é facilmente percebida no mercado de trabalho em geral, mas principalmente no mundo corporativo. Ou seja, elas podem até conseguir emprego, mas, normalmente, em posição de subalternidade e dificilmente em cargos de chefia em uma empresa, por exemplo.

De acordo com um levantamento do Instituto Ethos, que em 2018 consultou 117 das 500 maiores empresas do Brasil, os negros em geral são maioria apenas nos cargos de aprendizes (57,5%) e trainees (58,2%). Já quando falamos da participação de pessoas pretas em cargos de gerência, a porcentagem cai bruscamente para 6,3%. No quadro executivo das companhias, então, essa presença desce ainda mais, passando para para 4,7%.

E a situação das mulheres negras é ainda pior. A pesquisa mostrou que elas ocupam 10,3% dos cargos de nível funcional nas empresas analisadas; 8,2% nos cargos de supervisão e apenas 1,6% nos cargos de gerência.

Ao mesmo tempo, a pesquisa indicou que 55% dos principais gestores das empresas consideram haver menos negros do que deveria na gerência da companhia, enquanto 64% acham o mesmo sobre o quadro executivo. Ainda assim, profissionais negros percebem que esses gestores continuam exigindo especialidades para que tenham acesso às oportunidades - como inglês fluente, por exemplo - mesmo sabendo que grande parte da população negra não teve acesso a esses privilégios.

Os dados ficam ainda mais visíveis quando olhamos as diferenças no rendimento médio mensal por gênero e raça/cor. O gráfico abaixo, com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que as mulheres negras fazem parte do grupo da sociedade com menores salários, de R$ 500 a R$ 1 mil.

Segundo IBGE, mulheres negras são as que recebem os salários mais baixos no mercado de trabalho
Gráfico mostra diferença salarial: mulheres negras são as que recebem as remunerações mais baixas no mercado de trabalho. Crédito: IBGE

O comparativo evidencia outro dado interessante: homens, no geral, ganham mais que mulheres. Mas quando fazemos um recorte de raça, as mulheres brancas conseguem ganhar mais (entre R$ 1 mil a quase R$ 2 mil) que homens pretos (que ganham entre R$ 1 mil a R$ 1.500). Para especialistas, os números sugerem que o racismo se mostra mais forte do que o machismo não só no mundo corporativo, como na sociedade em geral. Como a mulher negra enfrenta os dois, racismo e machismo, ela fica constantemente abaixo nessa hierarquia. Já o homem branco, aparece sempre no topo do poder, ganhando os melhores salários.

"Ser mulher, por si só, já é um desafio para entrar no mercado de trabalho. Se for mulher preta é pior ainda. E isso fica mais nítido no mundo corporativo. Porque se você ganhar um salário mínimo já está inserida no mercado de trabalho, mas quando falamos de grandes empresas, pessoas negras estão, na maioria das vezes, como menor aprendiz, carregando papelada e etc. Estamos ligadas a trabalhos operacionais e não no campo de tomada de decisão", explica Ana Paula Tongo, CEO e cofundadora da empresa de engenharia e desenvolvedora de softwares Bitável Tecnologia.

A estrategista de inovação em tecnologia social e presidente do Instituto Das Pretas, Priscila Gama, completa que quando a mulher negra consegue, após muita dificuldade, fazer parte de uma empresa, dificilmente esse local de trabalho está preparado para receber a diversidade. Com isso, essas mulheres precisam lidar não apenas com a falta de pertencimento naquele lugar, como a dificuldade de conseguir permanecer no ambiente.

Presidente do Instituto Das Pretas, Priscila Gama coordena mais de 10 projetos de ações afirmativas e impacto social
Priscila Gama defende não só a entrada de mulheres negras em ambientes corporativos, como também a permanência. Crédito: Jove Fagundes

"Infelizmente são pouquíssimas empresas e instituições que não vulnerabilizam a performance profissional da mulher preta. São poucos os que não deslegitimam essa mulher exigindo inglês, intercâmbio e uma série de cursos que a maioria de nós não teve acesso. Não só a entrada, mas também a permanência nesses espaços é muito difícil. O caso da jornalista Maria Julia Coutinho, a Maju, é um exemplo clássico. Ela teve erros contados e apontados como nenhum outro jornalista branco teve. Por sorte, recebeu apoio do público. Mas há alguns anos, ela seria mandada embora. O que incomoda não são os erros da Maju. O que incomoda é a Maju. E o fato dela estar em um espaço que por muito tempo foi predominantemente branco".

Priscila completa que até mesmo dentro das empresas as mulheres negras não recebem tanta atenção se forem reclamar de assédio, por exemplo, quanto as mulheres brancas. E isso, segundo a especialista, acontece por um racismo que não só nega direitos, mas que naturaliza a sexualização e violação dos corpos pretos. "Como acha que me sinto ao fazer negociações de inclusão em empresas com homens brancos, e eles já começam o discurso tocando no meu corpo, no meu cabelo e dizendo que não são racistas porque têm amigos negros?", questiona.

Priscila Gama

Estrategista de inovação em tecnologia social e Presidente do Instituto Das Pretas

"Quando a mulher negra consegue uma posição de destaque em uma empresa, o mérito dela é sempre questionado. Na cabeça das pessoas, ela só está ali porque transou com alguém ou porque está inserida em uma política de cotas. Nunca é apenas pela capacidade dela"
Data: 19/11/2020 - ES - Vitória - Dia da consciência negra - Editoria: Cidades - Foto: Fernando Madeira - GZ
Frases pichadas nos muros da Capital provocam reflexão sobre a realidade das mulheres negras. Crédito: Fernando Madeira

A NEGRA RODEADA DE BRANCOS

Quando chegam a ascender de posição no mundo corporativo, a solidão continua quando mulheres negras olham para o lado e percebem que são as únicas em meio ao grupo majoritariamente branco. Nascida no Morro da Capixaba, em Vitória, a CEO e cofundadora da Bitável Tecnologia, Ana Paula Tongo, contou que precisou correr atrás de referências negras fora do Espírito Santo quando decidiu seguir pelo caminho da Engenharia de Produção. Isso, porque, ela não se via representada dentro das empresas capixabas.

"Falta preto nesses ambientes. Precisei catar outras iguais em empresas mundiais para poder trocar experiência. Iniciei minha empresa em 1999 e lembro que naquela época eu via apenas mulheres brancas empreendendo, normalmente com lojas de roupas. Eu não tinha acesso a isso, cresci no morro, e também não me interessava, eu sempre gostei de Engenharia. Mas nesse ramo eu não encontrava negras perto de mim, só pessoas brancas. Busquei referência em uma empreendedora preta de São Paulo", lembra.

Ana Paula não é a única mulher negra a ter essa percepção de solidão. Priscila Gama, por exemplo, acredita que é importante que mulheres negras que conseguiram ascensão no mercado de trabalho não deixem de frequentar locais tidos como elitizados porque esse é um direito que elas conquistaram. Mas ela confessa que é incômodo não ver outros iguais junto dela. "Nos lugares bacanas, não temos pares. Um corpo negro é um corpo sozinho. Sem outros negros para performar, pensar e se expressar junto da gente".

Vice-presidente do coletivo MUCA, Rayanne Rocha, conta que, assim como Priscila, às vezes sente um incômodo ao frequentar lugares onde não encontra negros. Mesmo sabendo que ocupar esses espaços é um direito dela, muitas vezes prefere priorizar locais onde se sinta representada.

Rayanne Rocha

Vice-presidente do coletivo MUCA

"Aí um amigo me chama para ir a um lugar legal com o argumento de que só tem 'gente bonita', e eu percebo que são apenas brancos bonitos. E os negros? As negras? Onde estão? Não os vejo nesses lugares privilegiados"
Dia da Consciência Negra
Rayanne Rocha diz que, mesmo tendo a pele mais clara e o cabelo menos crespo, percebe olhares quando vai a lugares elitizados. Crédito: Fernando Madeira

"Mesmo sendo menos retinta e com cabelo menos crespo, percebo os olhares quando vou a um lugar elitizado. Normalmente, eu sou a única negra. Ou os outros negros estão em posição de subalternidade. Não adianta, é algo que acaba nos fazendo mal. Tento tratá-los da forma mais carinhosa possível. Porque eu sei que, para muitas pessoas, os negros só podem estar em locais bacanas para servir. Sei que eles passam muitas humilhações. Porque eu já passei por muitas também. Trabalhei em bairros nobres de Vitória que hoje não consigo pisar de tanto preconceito que sofri trabalhando", lamenta.

Já percebendo uma cobrança social para a entrada e permanência de pessoas negras em ambientes que antes eram majoritariamente brancos, Ana Paulo Tongo explica que muitas empresas acabam caindo na armadilha do tokenismo: a prática de fazer apenas um esforço superficial ou simbólico para ser inclusivo, muitas vezes recrutando um pequeno número de negros para dar a aparência de igualdade racial dentro do ambiente de trabalho.

"Na prática, o tokenismo pode acontecer de várias formas. Um exemplo é uma organização que contrata um gerente negro e coloca todos os holofotes nessa contratação, fazendo aquele único negro de garoto-propaganda. Ao mesmo tempo, dentro da empresa, não existe equidade. Algumas instituições usam até propagandas com atores como funcionários fictícios. Esse movimento acontece muito e, às vezes, os gestores sequer têm consciência de que isso também é racismo. O racismo estrutural é tão grande que a pessoa não se dá conta que está exercendo essa prática", explica.

Ana Paula Tongo contou que precisou correr atrás de referências negras fora do Espírito Santo quando decidiu seguir pelo caminho Engenheira de Produção
Ana Paula Tongo precisou buscar referências negras fora do Espírito Santo quando decidiu seguir pelo caminho Engenharia de Produção. Crédito: Edson Chagas

Ana Paulo Tongo

CEO e cofundadora da empresa de engenharia e desenvolvedora de softwares

"Acho muito legal incentivar a economia criativa para renda salarial. Mas a empreendedora negra não precisa ser limitada a arte e culinária. Ela pode empreender na Engenharia, na Medicina ou ser astronauta. Mas é preciso equidade parar reverter as diferenças de raça e classe, pois as barreiras são grandes"

SOZINHA, UMA MULHER NEGRA PELAS RUAS DA GRANDE VITÓRIA

"Sozinha, uma mulher negra". A frase pichada em várias ruas da Grande Vitória chama a atenção. Para quem é mulher negra, o recado tem um impacto forte de identificação quase que imediata. A reportagem conversou com artista de rua criadora da mensagem, que prefere não ser identificada nesta matéria. Ela contou que a ideia surgiu baseada na própria experiência, ao sentir na pele o preterimento da mulher negra. A frase em questão, porém, foi criada após ler uma reportagem sobre Tess Asplund, uma mulher de 42 anos, com ascendência africana, que teve a imagem viralizada depois de enfrentar, sozinha, uma manifestação organizada pelo Movimento da Resistência Nórdica, na Suécia.

Artista de rua capixaba passou a pixar
Artista de rua capixaba passou a pichar a frase "sozinha, uma mulher negra", após ler uma reportagem sobre Tess Asplund. Crédito: David Lagerlöf

"Como toda mulher negra, eu sempre passei pela experiência de preterimento, de me sentir sozinha em espaços como a universidade, por exemplo. No meu trabalho, eu sempre via as mães negras sozinhas com os filhos. Na parte afetiva, percebo que a maioria das minhas amigas solteiras ou que nunca namoraram são negras. E isso é muito doido, porque nossa história é sempre a mesma: a gente começa a se relacionar com um cara, ele diz que não está pronto para um relacionamento sério e que não precisamos de rótulos. Logo depois, aparece namorando uma mulher branca. No início a gente acha que é coincidência, mas isso vai se repetindo várias e várias vezes até entendermos que somos preteridas mesmo", conta.

A artista de rua cita também a sexualização do corpo negro e dá como exemplo um caso recente onde os influenciadores Gustavo Rocha e Matheus Mazzafera falavam abertamente que para relações sexuais preferem o perfil "maloqueiro tatuado", dando exemplos de pessoas negras. Já para namorar e ter relacionamento sérios, preferem pessoas loiras.

"De repente todo mundo descobriu que o preto é bonito. Eu que sempre tive dificuldades em conseguir pares em apresentações de dança na escola, porque ninguém queria ficar ao lado de uma negra, agora escuto elogios de como sou bonita, como se só a estética importasse. Mas bonita apenas para o prazer sexual, nunca para receber afeto. O afeto é para os corpos brancos. Em 2016, quando eu vi a reportagem que iniciava com a frase 'sozinha, uma mulher negra enfrenta 300 neonazistas', essas palavras ficaram na minha cabeça: 'sozinha, uma mulher negra'. Eu já estava imbuída de toda essa vivência não só minha, mas de outras mulheres negras, e decidi falar sobre isso com as pessoas através da frase'", conta.

Mulher negra e artista de rua

Criadora da frase "Sozinha, uma mulher negra" nos muros da Grande Vitória.

"A frase é uma forma de dizer a essas mulheres que, mesmo sozinhas, em tantas esferas da sociedade, elas não são as únicas a ter essa sensação de preterimento. Agora a gente consegue nomear esse sentimento, colocar o assunto em debate e romper com o ciclo"
A frase
Frase "sozinha, uma mulher negra" foi pichada pela da Grande Vitória para chamar a atenção para a solidão da mulher negra. Crédito: Elis Carvalho

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