Publicado em 20 de novembro de 2020 às 16:06
Ser um empresário negro no Brasil é ter que aprender a conviver com o fato de ser um dos únicos - quando não, o único mesmo - com a cor da sua pele entre homens e mulheres que estão no mesmo status corporativo. Essa percepção foi repetida por todos os empresários desta reportagem. >
É também ter que se preocupar com pequenas coisas do dia a dia que nem passam pela cabeça das pessoas brancas. Um gerente de banco negro, por exemplo, tem que tomar o cuidado de não usar terno preto com camisa branca para não ser confundido com o segurança da instituição financeira.>
Parece exagero? Pois esse exemplo é real.>
"Quando eu trabalhava no HSBC, sempre fui um dos melhores, com os melhores resultados. Mas não podia usar qualquer roupa. Sempre privilegiei camisas coloridas e gravatas diferentes para não ser confundido com o segurança", diz Luciano Machado, cofundador da MMF Projetos, da área de projetos de engenharia de infraestrutura.>
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Formado em engenharia, Machado conta que sempre foi o único negro nas equipes em que trabalhou em empresas como Telefónica e Tigre. No seu próprio negócio, fundado em 2014, fez questão de mudar esse cenário. Se orgulha de ter contratado, desde o início, pessoas negras.>
"Cerca de 30% são negros, e ainda é pouco ao olharmos o todo, mas é muito quando comparamos com outras empresas do setor", diz.>
O empresário Sérgio All, cofundador da Conta Black, também tem o status de abrir caminhos em seu área de atuação. All foi o primeiro negro a fundar uma fintech no país. E, no caso dele, a ideia de ter um banco digital para atender todos os públicos, mas principalmente os negros, surgiu de uma necessidade.>
Estudos mostram que negros têm três vezes mais chance de ter o crédito negado no Brasil. Foi o que aconteceu com All. Publicitário bem-sucedido, resolveu trocar os computadores de sua agência.>
"A conta no banco tinha cerca de dez anos, eu tinha faturamento, tinha garantias, mas não consegui o crédito", afirma. Foi um baque que o fez recordar sua trajetória.>
"Minha mãe falava que em primeiro lugar tenho que zelar pelo meu nome, que tinha que estudar, me formar", diz "Fui criado por princípios, segui a cartilha e fiquei frustrado por não ter conseguido algo que tinha direito.">
A partir daí, All resolveu criar uma empresa focada em assessoria financeira e estudou o mercado por dez anos antes de abraçar a ideia que o levaria à fintech. "Percebi que não adiantava oferecer capacitação e novos negócios, se o empreendedor teria a dificuldade de conseguir crédito", afirma.>
"E entendemos o sistema, não precisava fazer análise, só precisamos de um documento válido, para que a pessoa tivesse o orgulho de ter uma conta", diz o publicitário. Atualmente, a instituição financeira tem 10 mil contas ativas.>
Dialogar com o público negro sempre foi uma das especialidades de Claudia Alexandre. Ela foi a primeira negra locutora de rádio líder de audiência em São Paulo, no fim da década de 1990.>
Ela diz que pediu demissão no início dos anos 2000, quando percebeu que mesmo líder de audiência tinha salários e condições piores do que outros locutores brancos. Montou uma agência de comunicação e, há dois anos, criou a BR Brazil Show, rádio digital com programação 24 horas por dia voltada ao samba.>
Segundo ela, a plataforma conseguiu 29 milhões de acessos nesse período. "Temos entrevistas, podcast, música e tudo voltado para o samba: resolvi criar a rádio porque percebi que era um espaço em que o samba não estava mais.">
O escritor Maurício Pestana, que lançou recentemente o livro "A Empresa Antiracista" elenca alguns motivos das mudanças nas empresas.>
"Hoje há um número maior de afrodescendentes mais escolarizados e antenados: o empresário que tem que olhar para esse contingente de possíveis consumidores e dialogar com eles para vender seu produto", afirma Pestana.>
No entanto, Pestana diz que ainda há dois tipos de empresário: os que realmente se preocupam com o aumento da diversidade e os que tentam sair bem na foto, mas não querem participar do filme.>
A empresa de César Nascimento, a Integrare, sofre na pele essas questões. Fundada no início da década de 2000, funciona como um intermediador e coloca em contato grandes empresas com pequenos fornecedores comandado por pessoas que se encaixem em um dos três pilares: afrodescendentes, indígenas e pessoas com deficiência.>
"Costumo dizer que nosso grande objetivo é fazer um elefante dançar com uma formiguinha", diz Nascimento.>
O modelo de negócio foi baseado em na National Minority Business Council, fundada em 1972 nos EA. Nascimento conta que teve uma grande inspiração quando a conheceu por dentro. "Acreditava que seria uma moleza convencer a replicar o modelo, mas foi uma grande frustração porque, aqui no Brasil, há 20 anos, ninguém falava em diversidade e quem conhecia o termo, mandava a gente para o RH.">
Ele diz que o que faz diferença no sucesso da parceria é o engajamento do que ele chama de C-Level, ou seja, dos cargos de presidência e diretoria.>
Nos últimos dez anos, a Integrare foi responsável por intermediar cerca de R$ 500 milhões em negócios de pequenos fornecedores, normalmente excluídos das grandes cadeias, com as grandes empresas nacionais e múltis.>
Nascimento crê que lenta ascensão de negros no mercado de trabalho e nas empresas está associada a falsa ideia de que não há racismo no Brasil e, por isso, o país não precisa de políticas afirmativas.>
O empresário Paulo Nogueira concorda, mas a partir de outro ponto de vista: a segregação nos EUA. Cofundador da Vale do Dendê, organização que visa fomentar ecossistemas de inovação e criatividade com foco em diversidade, ele diz que a formalização do separatismo racial nos EUA moveu o negro americano.>
"É curioso. São países parecidos. O que diferencia os dois é segregação racial formal, por lei", diz ele. "No Brasil nunca tivemos algo tão formal e unilateral. Lá, como a segregação amparada pela Justiça, os brancos se negavam a abrir negócios em comunidades negras, e isso acabou forçando os negros a abrir todo tipo de empresa, até bancos.">
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