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'A escola deve ler as pequenas aberturas do autista', diz psicanalista

'A escola deve ler as pequenas aberturas do autista', diz psicanalista

Bartyra Ribeiro de Castro, que estuda transtorno mental grave há mais de 20 anos, revela um mercado por trás da análise clínica. Em novo livro, ela destaca a importância dos pais nos cuidados com o autista

Publicado em 2 de abril de 2022 às 14:24

 - Atualizado há 4 anos

Bartyra Ribeiro de Castro
Psicóloga e psicanalista, Bartyra Ribeiro de Castro critica projeto que prevê eletrochoque em autistas Crédito: Carlos Alberto Silva

Uma em cada 100 crianças no mundo apresenta o Transtorno do Espectro Autista (TEA), segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) - agência de saúde norte-americana. No Brasil, estima-se 2 milhões de pessoas com algum grau de autismo.

Estudiosa sobre o tema, a psicóloga e psicanalista Bartyra Ribeiro de Castro preocupa-se com o que chama de “epidemia de diagnósticos”, sobretudo pelo risco de crianças serem tratadas por uma condição clínica que não apresentam.

Agora, outro motivo de apreensão, é uma proposta do governo federal para tratar autistas de nível severo com eletrochoque. “É no mínimo criminoso”, adverte Bartyra que, nesta entrevista para A Gazeta, no Dia Mundial de Conscientização do Autismo (2), fala também de trabalhos realizados na área, do Programa de Investigação Psicanalítica do Autismo - Pipa (e Rabiola), e ainda do novo livro “Não sem eles”.

A publicação, que organizou junto a educadora Ana Lúcia Sodré de Oliveira, trata sobre a importância dos pais nos cuidados com os filhos autistas.

De onde vem seu interesse pelo autismo?

  • Meu interesse não é exatamente a clínica de todos os dias. Hoje, por exemplo, não tenho nenhum paciente autista. Meu interesse nisso tudo começou em 2000 quando eu comecei a me aprofundar na psicose. Na época, o autismo era considerado uma esquizofrenia grave. Em 2003, criamos uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) - o Núcleo de Referência em Saúde - e montamos o primeiro ambulatório de transtorno mental grave do Espírito Santo.

  • Trabalhando com o transtorno, que era o que mais me interessava, a gente foi se dando conta que alguns diagnósticos de transtorno, na verdade, eram risco social. Algumas crianças que pareciam estar delirando, tinham uma realidade social extremamente precária e muitos daqueles relatos não eram delírios, eram verdade dada a precariedade social.

  • Como estava vinculada a uma Oscip, começamos a trabalhar transtorno mental grave e risco social. Daí, partimos para outros projetos. A Oscip é um guarda-chuva para vários projetos e um deles é o Pipa (e Rabiola) - criado em 2013.

E o que faz o Pipa (e Rabiola)?

  • Pipa quer dizer Programa de Investigação Psicanalítica do Autismo. Mas, como nenhuma pipa fica sem rabiola, o nome pegou. É o único projeto no Brasil que trabalha com pré-escola (educação infantil) com acolhimento de crianças autistas como um programa. 

  • Hoje, são seis frentes de pesquisa - Vitória, Rio de Janeiro, Teresópolis (RJ), Campina Grande (PB), São Paulo e Teixeira de Freitas (BA). Nos seis lugares, trabalhamos com a mesma política, oferecendo às prefeituras e também ao setor privado. No Pipa temos projetos como “Autismo no Cinema”, “Clube do Livro”, palestras.

Como os pais de autistas são envolvidos nessas ações?

  • Começamos a trabalhar com perguntas da sociedade. Fizemos um projeto que a Faesa nos encomendou porque, na clínica da faculdade, muitos pais estavam tendo dificuldades frente ao diagnóstico. “Ah, eu tenho um filho autista” e começavam a olhar para uma palavra. Passamos a trabalhar com esses pais com esta pergunta: “Quem é meu filho?” A criança tinha desaparecido atrás do diagnóstico.

Mas deve ser difícil para família receber o diagnóstico. Como lidar com essa nova condição?

  • Sim, até porque hoje em dia tem muita coisa em torno do autismo. O autismo sempre houve, mas tem tanto mercado em cima do autismo e o autista virou objeto do mercado. Então, hoje em dia os pais têm muito medo e às vezes negam o diagnóstico, que é óbvio.

  • O Pipa trabalha com uma pergunta na nossa pesquisa: existe uma epidemia de autismo ou uma epidemia de diagnóstico de autismo? Estamos chegando à conclusão que são as duas coisas. Existe uma epidemia de autismo, sim, e temos que nos perguntar enquanto sociedade por que estamos produzindo tanto autista.

Já conseguiram chegar a uma resposta?

  • Não sabemos, mas é uma pergunta importante. A família é o núcleo da sociedade. Então, tanto em pequeníssima escala quanto em grande, nós temos que perguntar como essas crianças se mostram assim, "de cara". Há relatos de autismo com três meses, fotografias de bebê no peito da mãe sem nenhuma troca social.

  • Por isso, a suspeita de que o autismo possa ser genético,  o que para nós é só uma suspeita. Nós não consideramos assim. A Psicanálise tem uma forma de diagnosticar o autismo diferente da Neurologia, da Psiquiatria, da Genética, das outras linhas de pesquisa.  Conversamos muito com os outros saberes e costumo dizer que o autismo é um imenso campo de “não saber”. Quanto mais a gente pesquisa, menos a gente sabe.

  • A gente conversa e eles dizem: ‘não temos nada’. Mas, pela precocidade, dá impressão que sim (é genético), mas para nós (Psicanálise) é muito claro que pode ser que não. Isso porque existe uma coisa chamada “insondável decisão do ser” e é muito precoce, se a criança corta um laço mínimo, muito radicalmente e muito cedo.

E sobre a epidemia de diagnósticos?

  • A gente acha que existe porque o mercado está ávido pelo autismo. O mercado farmacológico, psicológico, protocolar. Vende-se diagnóstico, laudo, protocolo, fármacos. Mas não existe medicamento para autismo porque o autismo não é uma doença. Para a Psicanálise, é uma forma de estar no mundo.

  • Cada um de nós tem uma forma de estar no mundo. Seja pela via da neurose, pela psicose, pela perversão ou do autismo. Essa foi a grande diferença que fez a entrada das autobiografias (publicações feitas por autistas e objeto de estudo do Pipa). No mundo da Psicanálise, da orientação que eu tenho da Associação Mundial de Psicanálise, existe uma questão que estamos confirmando que é a existência de uma quarta estrutura psíquica.

  • Por isso, o autismo fazia parecer uma esquizofrenia precoce, mas, cada vez mais, isolamos o autismo como outra estrutura psíquica, diferente da neurose, da psicose e  da perversão. Tem outros princípios que não atendem a nenhum dos outros três. Essa é a nossa pesquisa: se é mesmo uma quarta estrutura psíquica porque o modo de funcionamento é completamente distinto de todos os outros. E é isso que extraímos das autobiografias.

Os pais conseguiram responder quem são seus filhos?

  • A gente colocou os pais para criar personagens para além, para reconhecer aquela criança além do diagnóstico, para ver se conseguiam ver a criança de volta. Foi uma surpresa. O primeiro livro - "Quem é meu filho...?" - reúne seis contos de pais que começaram a reconhecer seus filhos e viram o que eles gostavam de comer, se gostavam ou não de tomar banho; eles começaram a olhar as crianças para além daquela etiqueta. Foi superbacana!

  • Com essa mesma ideia, a gente perguntou para os professores: “quem é meu aluno?”. Eles também tinham que olhar o aluno para além do diagnóstico. Brincando, criando personagem e saiu esse outro livro (cujo título é a pergunta). Uma coisa que a gente ama é que o livro foi todo ilustrado pelas crianças de altas habilidades (da rede municipal) de Vitória.

Como foi esse processo com os professores?

  • Os professores foram se soltando, escreveram, e de repente a gente começou a ver que os professores respondiam à pergunta através do aluno ou deles mesmo e fizemos “Um Guia que vai Atrás”, a mesma posição do professor e do psicanalista frente ao autismo: a gente precisa se posicionar para eles, mas vai atrás, e não na frente. Essa é a virada da Psicanálise em relação a qualquer outro saber. A gente parte do princípio que tanto o autista quanto qualquer outro é quem sabe da história dele. Mas aí podem dizer: ‘mas o autista não fala’. Ele não fala, mas se faz entender e podemos ajudá-lo. Tanto que nossa ideia é: escute os autistas. Não sei se ele vai pronunciar as palavras, mas, quando querem, se fazem comunicar.

  • Em 2019, começamos a receber os pais em alguns encontros.  Fizemos sessão de cinema para botar os pais dos alunos ligados à prefeitura para conversar e tirar suas dúvidas. Os professores fizeram entrevistas com os pais e nos passaram todo o material. Fizemos textos teóricos, na linguagem bem informal sobre o comentário dos pais e o que suscitava também em cima das autobiografias, as coisas que lemos no "Clube do Livro". Então, nasceu “Não sem eles”. A nossa posição que é não sem os pais porque existem técnicas de tratamento que excluem completamente os pais.

Mas  a participação dos pais é fundamental, considerando que estão envolvidos emocionalmente.

  • Então, é importante que estejam emocionalmente envolvidos. No acompanhamento do autismo, tem que estar porque são crianças que se apartam do afeto. E se tiver uma técnica que aparta eles do afeto todo o tempo, a gente só vai afundar. Eu vivo dizendo: no autismo, temos que perceber as frestas que eles abrem através das muralhas que eles criam. Se a gente não tiver cuidado, eles vão descer para o porão (se esconder).

Falamos de espectro autista, ou seja, vários graus de manifestação do transtorno. Há casos de crianças bastante afetuosas. Estar apartado do afeto é uma condição absoluta do autismo?

  • Ter o diagnóstico não é ser. Tem uma prefeitura com quase mil autistas na rede pública. Ou todas as crianças se mudaram para a cidade, ou tem diagnóstico errado. Como pode, um município nos cafundós, ter quase mil autistas? Tem alguma coisa errada. Percebe a indústria do laudo? É muito grave!

Mas, para as famílias, deve ser muito difícil fazer a distinção. Afinal, o profissional de saúde é considerado uma autoridade.

  • Um dos textos trata justamente sobre a autorização aos pais de questionar os especialistas para que possam aventar a ideia de devolver a infância a seu filho. Os especialistas são estudiosos, não são autoridades. Você pode questioná-lo.

Qual é o papel da escola nesse processo?

  • A escola é o primeiro núcleo fora da família, é a primeira sociedade um pouco mais ampla, onde aparecem outras nuances do mundo. Então, se a gente tem um menino extremamente fechadinho, e que a família sabe ou não lidar com isso, quando abre um pouco o mundo dele, ele tem que inventar também o estar nesse mundo, que pode ser ficar quietinho no canto, ficar apartado, e vai depender da formação do professor para ir trazendo. E é isso que a gente faz lá: forma o professor para que ele possa acolher essa criança sem invadir. Se ele souber como essa criança funciona, pelo menos em tese, pode se aproximar dessa ou outra forma para que a criança apareça. Eles têm uma forma de se fazer apresentar que são pequenas nuances de laços com o mundo.

  • Pode ser nada, e é o mais difícil, e pode ser através de alguns elementos, como, por exemplo, eles usam duplos - às vezes são tirados de objetos autísticos que eles carregam. A gente já considera que, quando um autista escolhe um objeto, é uma abertura dele para o mundo. A gente só precisa saber ler.

  • Na escola, os professores têm também que negociar com os outros (alunos). A inclusão social é muito mais para quem se acha naturalmente incluído - não existe isso, mas acreditam - do que quem já sabe que é diferente. A diferença é insuportável para quem se acha igual.

Quando há alunos com uma condição especial, como o autista, as escolas não deveriam ser mais transparentes com as famílias para que, em cada núcleo familiar, também possa se falar do assunto e evitar, inclusive, o bullying?

  • O autismo é um grande problema na sociedade hoje em dia. É tanto conceito pré-concebido, uns mimam demais, outros tratam como se fossem débeis. Virou um grande problema. São crianças que têm uma psicopatologia, sim, mas que são tratadas, não para deixarem de ter, mas para estarem melhor no mundo. Psicopatologia todos nós temos. Eles também. Têm, não. Eles são autistas porque não é uma doença que vem de fora. Não é 'fulano tem autismo'. Não, o termo é 'a criança é autista', como a pessoa é neurótica, é psicótica. É a forma de estar no mundo.

  • Eles escolhem às vezes objetos, às vezes duplos, fazem sua extensão e o seu laço com o mundo, que podem ser inanimados e animados (animais ou humanos), de acordo com o que suportam como perda de controle. Porque eles se defendem do afeto, tentam controlar todo o seu mundo, por isso muitos são colecionadores, a forma de estar pela via do código. Não é como a gente que vai pela via do significante, que faz metáforas, faz uma série de coisas com a linguagem; eles ficam no código.

  • E a comunicação é dificílima para eles porque pau é pau, pedra é pedra. Então, “tomei um chá de cadeira” é incompreensível para eles. Esses elementos da linguagem que a gente tem, eles não têm. Eles estão na linguagem do código, que é controlável. O mundo para eles é controlável. Em várias autobiografias eles falam que cada palavra deveria ter apenas um significado, não deveria ter sentido. “Mas em que sentido você está falando?” Acabou a conversa para eles.

  • A função da escola é essa, poder ler as pequenas aberturas. E é isso que a gente faz: forma os professores para conhecer o funcionamento autístico para ajudar essas crianças a vir ao mundo porque elas estão apartadas, mas isso não é fácil. 

Como você já disse, há pais com dificuldades diante do diagnóstico. No dia a dia, o que as famílias devem observar, como ajudar seus filhos autistas?

  • Primeiro eu questiono os diagnósticos, depois questiono a obrigatoriedade dos diagnósticos. A função do diagnóstico é nos facilitar na condução de um trabalho. Quando a gente pede para afinar um diagnóstico, é porque pode-se confundir uma criança inibida com um autista, uma psicótica com um autista. São formas diferentes de estar no mundo. Se toma um tipo clínico por outro, pode atrapalhar em vez de ajudar. 

  • O autismo é um grande problema, é uma grande indústria. São só crianças e a gente tem que poder oferecer um tratamento que condiga com a situação que estão trazendo. Então, afinar o diagnóstico é fundamental. 

  • Há uma ideia de que a Psicanálise responsabiliza os pais, e não é verdade. Os pais são responsáveis pelos filhos, é claro, mas não são responsáveis pelo autismo dos filhos. É o que a gente chama de insondável decisão do ser. 'Como eu tenho cinco filhos, e um ou dois têm autismo?' É porque cada um se posiciona, com sua precocidade; nós decidimos muita coisa na nossa precocidade. 

  • Tem que ter formas específicas de tratar uma psicose, uma neurose, uma fobia, o autismo. Por isso que o diagnóstico fino é tão fundamental para que não confunda as estruturas e possa oferecer o melhor tratamento. Mas existem pais que não querem diagnosticar e esses filhos são ótimos porque não trouxeram uma etiqueta em cima.

  • Enquanto o autismo ou qualquer outro diagnóstico for tratado como etiqueta, está matando aquele sujeito. 'Fulano tem um amigo autista. Não, tem um amigo João'. Faz toda a diferença. Cada criança é uma, cada um é um. É preciso olhar a criança, é preciso que tenha o seu nome.

  • Este livro que lançamos é para trazer os pais para pensar esse tipo de coisa, para dizer: 'olha, quem tem autoridade sobre seus filhos são vocês.' Há uma criança ali. Não são pilhas de protocolos, nada disso. Tem uma criança ali. Isso é fundamental. É o objetivo do livro. Não sem eles é não sem os pais, não podemos prescindir deles.

Os pais têm essa consciência?

  • Não é fácil. A ciência tem autoridade grande na sociedade hoje, mas muitas vezes não é ciência qualificada; é pseudociência. A gente abre internet tem gente falando um monte de coisas que não faz ideia sobre o que seja. Os pais estão muito reféns. A proposta que a gente faz é esta: resgatar a autoridade dos pais e considerar o diagnóstico um elemento importante, não para tirar a autoridade, mas para auxiliar no tratamento. É isso que é importante para não acabar com a infância, encaixotar a criança de novo. 

Falando em tratamento, hoje o governo federal propõe eletrochoque em pacientes com grau severo de autismo. Qual a sua avaliação a respeito?

  • Eu tenho uma palavra: criminoso. Não consigo dizer outra coisa; é no mínimo criminoso. Não tem nada que justifique, independentemente do grau. A eletroconvulsoterapia - popularmente chamada eletrochoque - o máximo que vai fazer é tirar o autista da imutabilidade. O autista não está ali por falta de estímulo elétrico. Ele tem que ser respeitado e tratado. E o tratamento não passa por isso, nem por medicação. Aliás, não tem remédio para autismo, o que se tem é medicação para conter um pouco a agitação quando o corpo está posto em risco.

  • Não se pode também colocar o autista numa sala especial, fazendo exclusão. Eu me sinto andando para trás. Tem que ter política pública para garantir uma rede de apoio. 

Na sua concepção, quais são as abordagens indicadas para tratar o autista?

  • A gente não é contra as terapias, nem pensa que a Psicanálise vai salvar os autistas. Mas, primeiro, a gente quer que a Psicanálise seja incluída entre as possibilidades de tratamento porque comprovadamente, historicamente, é sucesso clínico com as crianças autistas. 

  • Hoje em dia, a pessoa vai ao médico e recebe o diagnóstico de autismo e já é encaminhada para fazer Terapia Cognitiva Comportamental, ou vai fazer fonoaudiólogo, terapia ocupacional, tem uma lista. Mas quem disse que precisa disso? Cada um é um. Do que seu filho gosta? Como o autista não tem a dimensão do corpo, por exemplo, às vezes a água vai dar a dimensão e é ótimo, às vezes a água pode ser um horror, como uma invasão. É um a um. O que é bom para um, pode não ser para outro. 

Bartyra Ribeiro de Castro
O livro Não sem Eles retrata experiências de pais de autistas Crédito: Carlos Alberto Silva
Correção
03/04/2022 - 10:24hrs
Após a publicação da entrevista, a psicanalista Bartyra Ribeiro informou que o projeto de formação de professores sobre autismo na rede municipal de Vitória foi suspenso. O texto foi atualizado. 
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