Publicado em 16 de julho de 2019 às 11:05
- Atualizado há 6 anos
"Ainda bem que os discos ficaram, roubaram só a capa autografada. O das minhas tias também levaram", conta Thelma Ramalho, falando de "Paêbirú", primeira obra assinada por seu primo mais famoso, Zé Ramalho, em parceria com Lula Côrtes.>
Uma parte dos 300 vinis do disco de 1975 ficou encalhada na casa de Thelma. Na época, não havia interesse. "Imagina se a gente pudesse prever o futuro?" Hoje, uma cópia original de "Paêbirú" -o mais raro LP do Brasil- pode valer mais de R$ 10 mil, mais até que "Louco Por Você" (1961), disco renegado por Roberto Carlos.>
Culminando com o interesse crescente em torno de "Paêbirú", o álbum finalmente ganhou um relançamento oficial. Depois de uma reedição não autorizada feita pelo selo inglês Mr Bongo, a Polysom agora recria o LP a partir das fitas originais.>
A nova versão de "Paêbirú" tem como diferencial a participação de Helio Rozenblit, produtor e técnico de som do original.>
>
"Foi uma viagem ao passado", ele conta. "Lula 'tocou' um gerador de sinal; Alceu Valença 'tirou um som' com um pente e celofane arrancado da embalagem de cigarro.">
A Rozenblit, fundada pelo pai de Helio, José, era a única fábrica de discos fora do eixo Rio-São Paulo. O selo criado em Recife, nos anos 1950, se estabeleceu apostando na música regional, em especial o frevo. Nos anos 1970, já vivia a decadência.>
Sem ambições comerciais, "Paêbirú" ganhou apenas 1.300 cópias, mas cerca de 1.000 delas se perderam em uma enchente.>
"Toda a primeira tiragem do 'Paêbirú', com exceção de amostras entregues aos artistas, foram inutilizadas, juntamente com as madres e matrizes", lembra Helio. "As fitas foram salvas da água por estarem no alto das estantes de aço do nosso arquivo.">
Lula Côrtes morreu em 2011 e Zé Ramalho não fala sobre o álbum. O que se diz é que o paraibano não teria gostado de ter ficado na parte traseira do LP, enquanto Lula estampou a capa. Para Thelma, isso é bobagem: "Inventaram muitas histórias sobre esse disco".>
Bastos acredita em um certo rancor de Zé Ramalho. "Um pensamento de 'se na época ninguém deu moral, por que agora vão querer saber disso?'.">
Com distribuição tão limitada, "Paêbirú" estava fadado ao esquecimento. O interesse pelo disco cresceu -no Brasil, mas principalmente no exterior- junto a um redescobrimento da psicodelia nordestina (ou "udrigrudi"). A cena recifense do começo dos anos 1970, da qual Lula Côrtes era uma espécie de guru, reunia artistas como Ave Sangria, Marconi Notaro e Flaviola e O Bando do Sol.>
Leo Kartez, colecionador russo que se tornou um aficionado pelo "udigrudi", chegou a traduzir todo o encarte de "Paêbirú" (seu LP favorito em 30 anos colecionando).>
Se tivesse que vender seu "Paêbirú" original, diz ele, cobraria entre R$ 8 e R$ 12 mil. "Mas não gosto de conversar de dinheiro quando o assunto é 'Paêbirú'. Prefiro falar sobre arte", diz.>
Nos próximos anos, os 300 LPs originais da obra devem ficar ainda mais caros e raros. Mas, para além do fetiche pela raridade, dos relançamentos e publicações piratas do álbum na internet, têm aumentado as discussões sobre o conteúdo do disco em si.>
Dividido em quatro partes -equivalentes conceituais aos elementos terra, ar, fogo e água-, o álbum é baseado nas viagens que Zé e Lula fizeram até a Pedra do Ingá, monumento arqueológico na Paraíba. O terreno rochoso, com desenhos e inscrições rupestres em sua superfície, é a base de diversas lendas locais.>
Segundo Cristiano Bastos, autor da reportagem "Agreste Psicodélico" e do documentário "Nas Paredes da Pedra Encantada", sobre "Paêbirú", as explorações da dupla apontavam para uma entidade mitológica chamada Sumé, que teria transmitido conhecimentos aos índios antes da chegada dos colonizadores.>
"Eles fizeram estudos, interpretações da cultura dos índios e dos negros locais", ele diz.>
Com uma assustadora variedade sonora -não só de tambores, sopros e cordas, mas de cantos de pássaros e barulho de água corrente, por exemplo-, o álbum é dotado de uma psicodelia orgânica e artesanal. Para Bastos, esta é a razão de uma raridade artística, não apenas física, do álbum.>
"Tem um som que muita gente achava ser eletrônico, mas era um pedaço de alguma folha. Lula tocava com dente de tubarão", conta o jornalista. "É um tipo de psicodelia que ninguém mais consegue ouvir, em nenhum lugar. E ninguém vai emular esse tipo de música, porque ela é indígena, é brasileira.">
'Paêbirú'>
Artista: Lula Côrtes e Zé Ramalho>
Preço: R$ 250>
Gravadora: Polysom>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta