Publicado em 26 de julho de 2019 às 11:35
Um bebê deixa o útero da mãe. Em seguida, já crescida, a garota é interrompida enquanto conta e reconta sem parar o número de hastes metálicas de uma luminária. Levada a um consultório, ela recebe o diagnóstico de transtorno obsessivo-compulsivo, déficit de atenção e bipolaridade, entre outros distúrbios.>
A rápida sequência de cenas, dos minutos iniciais da série "Euphoria", foi suficiente para que Bruna Nascimento, 24, desligasse a TV. "Vi até ela dizer que tem transtornos, alguns parecidos com os meus.">
Para descobrir se era seguro seguir adiante, ela recorreu à internet. Criou um post num grupo de cinema do qual faz parte no Facebook. "Alguém sabe me informar se a série é tranquila ou se tem algum gatilho como automutilação ou suicídio?", questionou.>
O caso dela não é incomum. Muitos jovens têm buscado em redes sociais informações sobre séries, filmes e livros antes de ver ou ler, querendo saber se trazem gatilhos emocionais --conteúdos com potencial de causar aflição ou sofrimento em quem vê.>
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Os temas com os quais Nascimento evita entrar em contato são automutilação, suicídio, bipolaridade e mania de perseguição. Ela conta que a ideia de se mutilar surgiu da ficção, depois de ler "Objetos Cortantes", de Gillian Flynn.>
"Comecei quando minha mãe morreu. No livro, isso fazia a dor da personagem sumir. Naquele momento de luto, me cortar trazia um alívio momentâneo", afirma.>
Fã de autores como Stephen King e Charles Bukowski, hoje ela se mantém alerta ao assistir a um filme, série ou ler um livro, por recomendação do psiquiatra. "Há um tempo, assisti à série 'Sob Pressão', em que a personagem se mutilava. Foi como se viesse um grito dizendo 'volta a fazer, volta a fazer'. Tanto é que voltei.">
A presença de possíveis gatilhos vem fazendo com que conteúdos sobre temas como suicídio sejam adaptados às emoções do público. >
Neste mês, a Netflix anunciou que removeria da série "13 Reasons Why" uma cena que mostrava a personagem Hannah cortando os pulsos. Lançada em 2017, a produção foi criticada porque, supostamente, poderia incentivar o suicídio --estudos indicaram que houve aumento no número de casos após a estreia, embora não seja possível relacioná-los ao programa.>
Caminho diferente seguiu o filme nacional "Yonlu", baseado em um caso real. A produção optou desde o início por não mostrar o suicídio de seu protagonista adolescente.>
"Em vez de avisar sobre o gatilho, reconstituímos em cena uma entrevista real do terapeuta do Yonlu, que reflete sobre o tema", conta o diretor do longa, Hique Montanari.>
Estudados há anos em universidades e blogs e foco de polêmicas sobre sua eficácia, os "trigger warnings", ou alertas de gatilho, são avisos prévios voltados a quem sofre com traumas e distúrbios.>
Em grupos no Facebook, avisos do tipo podem ser encontrados em vários posts. Antes de apertar play, é possível saber que "Euphoria" fala de drogas, transtornos psicológicos e automutilação. >
Até a protagonista da série, a atriz Zendaya, avisou sobre o conteúdo. "Há cenas gráficas, difíceis de assistir e que podem ser gatilhos. Só veja se sentir que pode lidar com isso", postou no Instagram.>
Uma jovem de 17 anos diz ter dúvidas sobre ver "It: A Coisa 2" porque o longa, que deve estrear em setembro, pode conter cenas de abuso sexual.>
O receio tem origem num trauma da infância. "Aos 12 anos, fui ameaçada de estupro. Nunca esqueci a voz dele: 'Eu sei onde você mora, é melhor você ficar trancada em casa, cachorrinha, porque se eu te pegar na rua...'. Desde então, sinto medo quando um homem se aproxima", conta.>
Conteúdos de ficção podem atingir pessoas vulneráveis porque neles ocorre um forte processo de identificação com os personagens, afirma o psiquiatra Neury José Botega.>
"Certos livros podem estimular uma pessoa a conversar com um terapeuta, mas a regra é que, quando alguém não está bem, não é qualquer coisa que se deve incentivar.">
Em alguns casos, o alerta de gatilho substitui informalmente a classificação indicativa. "Antes ele só indicava a idade. Hoje [a partir de lei de 2018], há descrições que alertam para temas fortes retratados nas obras", explica Eduardo Nepomuceno, chefe do serviço de classificação indicativa do Ministério da Justiça.>
Pesquisas recentes questionam os efeitos positivos dos avisos de gatilho. Dois experimentos de universidades da Nova Zelândia e da Austrália apontam que alertas têm pouco efeito prático. Em ambos, pessoas expostas a conteúdos aflitivos tiveram reações semelhantes, independentemente de terem sido avisadas previamente ou não.>
Outro estudo, da Universidade Harvard, divulgado em julho, concluiu que avisos de gatilho aumentam a ansiedade em sobreviventes de traumas.>
Segundo a psicóloga Karen Scavacini, coordenadora de um instituto de prevenção ao suicídio, o alerta é positivo, mas seu efeito pode ser diluído caso seja aplicado em situações em que não é necessário.>
"Quando você avisa, dá a escolha de ver ou não. Quem olha para a foto de um acidente pode não sentir nada, mas alguém que tem um trauma pode reviver lembranças negativas", afirma.>
Scavacini acrescenta que o uso do mecanismo não pode encerrar o diálogo sobre temas sensíveis. "Inevitavelmente haverá cenas de violência e racismo, o que é válido, só não é recomendado para todos.">
"Hoje há liberdade grande para se falar em temas tabu. Mas avisar é importante, mostra que a pessoa se põe no lugar do outro", diz ela.>
Scavacini diz que a Netflix está correta em retirar a cena, já que segue orientação da Organização Mundial da Saúde de não detalhar métodos de suicídio.>
Nascimento não sabe ainda se um dia poderá ver conteúdos com temas sensíveis. "Não sei o que pode acontecer com meu corpo nem com meu cérebro.">
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