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'O povo deveria estar nas ruas', diz cineasta Marcelo Gomes

"O povo deveria estar nas ruas", diz cineasta Marcelo Gomes

"Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar" chega ao Cine Metrópolis após fazer sucesso de público e de crítica no Festival de Berlim, em janeiro

Publicado em 10 de julho de 2019 às 16:12

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Cena do documentário "Estou me Guardando pra Quando o Carnaval Chegar". (Divulgação/Vitrine)

"E quem me ofende, humilhando, pisando/Pensando que eu vou aturar/Tô me guardando pra quando o Carnaval chegar...". A citação remete à música de Chico Buarque, "Quando o Carnaval Chegar", mas reflete com perfeição a realidade de Toritama, cidade miserável de 37 mil habitantes encrustada no seco agreste pernambucano.

Mas o que o lugar tem a ver com a música do Chico, lançada em 1972? Explicando por partes, Toritama é mais um "produto" do avanço do neoliberalismo nas pequenas cidades do interior do país. Antes agrária, hoje a localidade tornou-se a maior produtora de jeans do Brasil, com pequenas fábricas caseiras, chamadas pelos moradores pelo sugestivo nome de "facção". Quase 90% da cidade faz da produção de jeans o seu ganha-pão.

Por lá, vê-se pessoas trabalhando mais de 16 horas por dia em condições insalubres e ganhando centavos para isso, em um trabalho quase escravo. A redenção? A chegada do Carnaval, único momento em que os moradores conseguem fugir do árduo dia a dia.

A música de Chico Buarque, na verdade, é uma liberdade poética que o diretor Marcelo Gomes (dos excelentes "Cinema, Aspirinas e Urubus", de 2002, e "Era uma Vez Eu, Verônica", 2005) teve para retratar o cotidiano massacrante de Toritama em seu documentário "Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar". Sucesso de crítica e de público desde o seu lançamento no Festival de Berlim, em janeiro, o filme estreia no Cine Metrópolis nesta sexta-feira (12).

"Fiz uma homenagem à música. Sua melodia doce combinava com a alegria dos moradores da cidade, que falavam com muita expectativa sobre a chegada da folia, sua única fonte de diversão em uma vida marcada pela exploração de um trabalho quase escravo", explica o cineasta, em entrevista ao Gazeta Online para falar de seu novo projeto, vencedor do Prêmio da Crítica do festival "É tudo Verdade 2019".

NEGÓCIOS

A ideia do longa, de acordo com o realizador, nasceu após passar em frente à cidade e ver que a região - há menos de 20 anos pacata, com uma biblioteca e quase nenhuma diversão - agora estava marcada pela poluição, pessoas ficando doentes e desesperadas para ter o próprio negócio e, o que é pior, vendendo o trabalho por pouco dinheiro, em uma falsa ideia de acensão social.

"Vejo o filme como um retrato do capitalismo moderno, em que as pessoas só pensam em trabalhar, mas são exploradas pelo sistema que elas ajudam a alimentar", acredita, dizendo que o regime neoliberal, muito defendido pelos economistas, nos colocam dentro de uma lógica desumana.

"Exigem que você consuma e, para isso, precisa labutar cada vez mais. A economia não 'gira' sem esse consumo. Só esquecem que você precisa de descanso, até para usufruir dos bens que adquire. Em Toritama, as pessoas se desfizeram de seus sonhos, da sala de estar e de memórias afetivas e familiares para construir oficinas de costura. Você se acha livre, mas trabalha 16 horas por dia", ressalta.

HUMANISMO

Marcelo Gomes, diretor do filme "Estou me Guardando pra Quando o Carnaval Chegar". (Divulgação/Beatriz Masson)

"Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar" é um filme marcado por acertos. A narrativa humana e em primeira pessoa, proposta por Miguel Gomes, traz afetividade a uma história árida, que expõe a mecanização do trabalho e das relações interpessoais.

No filme de Gomes, vemos muito da obra de Dziga Vertov, autor do clássico "O Homem com uma Câmera" (1929). Do mestre do cinema naturalista soviético, temos o pesado cotidiano do proletário, que tenta ter dignidade, porém sem capacidade de se expressar.

É assustador ver os moradores de Toritama sendo tratados como uma simples peça de reposição de uma engrenagem que remete a Revolução Industrial Inglesa do Século XVIII, especialmente nas condições de trabalho. O tempo passou e a realidade continua a mesma. Exageros à parte, é como se "Tempos Modernos" (1936), de Charlie Chaplin, e "Metrópolis" (1927), de Fritz Lang, retratassem a realidade das fábricas de picolés na esquina de sua casa.

"Toritama é o exemplo claro da precarização que as novas leis trabalhistas trouxeram. Viramos uma China, um Bangladesh, com um Carnaval no início do ano. O curioso é que o nordestino ganhou fama de não gostar de trabalhar, de viver da Bolsa Família... O filme veio para quebrar esse esterótipo”, assinala.

FOLIA

Cena do filme "Estou me Guardando pra Quando o Carnaval Chegar". (Divulgação/Vitrine)

Ah, sim, o Carnaval... Em Toritama, as pessoas vendem tudo o que produzem durante o ano, todos os bens de consumo de suas casas, para, estressados, poderem descansar na praia nos dias de folia.

"É estranho você trabalhar tanto e vender o que conquistou depois, para uma felicidade efêmera. Tentei achar respostas para essa atitude da população, pois eles precisam recomeçar do zero na Quarta-Feira de Cinzas. Vejo a atitude como um fetiche, um sonho de transgressão contra quem o agride”.

"Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar" estreia em um momento crucial para o Brasil, que está prestes a aprovar uma reforma da Previdência Social que, de acordo com o diretor, promete tirar ainda mais direitos trabalhistas e dificultar o acesso à aposentadoria.

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"O filme ganhou uma pauta urgente. Vejo o Brasil com várias 'Toritamas' em um futuro bem próximo. A nova previdência vai trazer o falso estímulo ao trabalho autônomo, sem carteira assinada e sem direitos. Estão tentando fazer a economia girar massacrando o trabalhador. Eles querem que a gente pare, que fiquemos inertes. O povo deveria estar nas ruas lutando contra essa nova previdência, mas não está..."

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