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Deborah Colker: 'Preconceito é ignorância. Até pior do que a censura'

Deborah Colker: "Preconceito é ignorância. Até pior do que a censura"

Prestes a desembarcar no Estado com o espetáculo "Cão Sem Pluma", a bailarina e coreógrafa Deborah Colker fala sobre o amor pelo neto, a paixão pela dança, as lutas diárias e a censura das artes

Publicado em 3 de março de 2018 às 23:49

Deborah Colker Crédito: Deborah Colker | Divulgação

Para a coreógrafa e bailarina Deborah Colker, o impossível parece não existir. Determinada e apaixonada pela dança, Deborah fundou em 1994 a Companhia de Dança Deborah Colker – foi a primeira mulher a dirigir um espetáculo do famoso Cirque du Soleil, o “Ovo”, conquistou inúmeros prêmios ao redor do globo e atraiu todos os olhares do mundo em 2016 ao ser a Diretora de Movimento das Olimpíadas do Rio 2016. Ao todo, a coreógrafa carioca soma doze espetáculos que já rodaram todo o mundo, entre eles “Velox”, “Nó”, “Rota”. Apesar de sua gloriosa carreira, Deborah ainda busca um prêmio maior, pelo qual luta com unhas e dentes (assim como em tudo que faz): a cura da epidermólise bolhosa (EB). Seu neto Theo, de 8 anos, foi diagnosticado com a doença genética não contagiosa e a coreógrafa e avó conta que a chegada do neto, a ‘razão da sua existência’ a fez uma pessoa melhor.

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Nós somos o bom e o mau, a saúde e a doença, a alegria e a tristeza, o branco e o preto, somos tudo isso. As religiões, quanto mais elas se somam, mais elas enriquecem. O preconceito em todos os níveis é uma ignorância, uma estupidez

Deborah Colker
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Theo também é a inspiração do seu espetáculo “Cão Sem Plumas”, baseado no poema homônimo de João Cabral de Melo Neto (1920- 1999), seu primeiro espetáculo de temática explicitamente brasileira. A montagem, que chega a Vitória nos dias 31 de março e 1º de abril, mistura dança e cinema; são 13 bailarinos no palco, cobertos por lama, alusão às paisagens que o poema descreve. “Digo que é um espetáculo 4D. Música, dança, cinema e poesia. Esse espetáculo junta todas as culturas, a música e a cultura nordestina. Estão lá o coco, o maracatu, o cavalo-marinho, o frevo... é um espetáculo rico em movimento, música e estética. Não é o clichê folclórico, mas está tudo ali presente, vibrando.” Confira agora nossa conversa com Deborah Colker.

Adaptação: o espetáculo Cão Sem Plumas é baseado no poema homônimo de João Cabral de Melo Neto, escrito em 1950, que mostra a pobreza da população ribeirinha, o descaso das elites e a vida no mangue Crédito: Deborah Colker | Divulgação

ENTREVISTA COM DEBORAH COLKER

Você foi jogadora de vôlei, estudou piano. Como chegou à dança?

Minha história começa com a música, com o piano, e com o esporte. Eu acho que a dança veio juntar a energia do esporte o desafio o corpo com a poesia, a arte e a delicadeza da música. Fui uma estudiosa de piano. Meu pai era músico. Conquistei desafios e caminhos na música. E o mundo do esporte foi muito intenso, muito significativo. Quando deixei os dois, eu não larguei tudo isso, apenas desloquei para a dança.

Você também cursou Psicologia.

Sim. Lembro claramente da minha mãe dizendo que se eu quisesse fazer dança, teria que me formar. Isso era final dos anos 1970, início dos anos 80. Não existia isso de uma pessoa se profissionalizar em dança contemporânea. Muita gente nem sabia o que era. Acho que todos esses conhecimentos estão presentes no meu trabalho. A psicologia em uma companhia de dança é importante para dirigir um monte de vaidades, não é fácil.

E o que a dança representa pra você?

Não consigo nem dizer. É como me perguntar o que meus filhos representam pra mim. Não consigo ter uma resposta racional. A dança é quem eu sou. Eu capto o mundo através do movimento, me comunico e respiro através do movimento.

Você passa essa imagem de uma mulher determinada, forte, que não mede esforços para realizar o que quer. Acha que esse é um dos segredos do seu êxito?

Eu acredito na luta. A vida é uma luta todo dia. Eu tenho essa determinação, essa obsessão. Eu me entrego ao trabalho, com muita paixão, é a minha vida. Cada coisa pra mim é meu último suspiro, é como se fosse o primeiro e o último.

Apesar da nossa riqueza cultural, das nossas danças folclóricas, a dança e a arte ainda recebem pouco incentivo. O que você acha disso?

Não dá pra especificar só a dança, toda nossa cultura e a educação deveriam ser incentivadas. Mas é uma questão de duas vias. Essa posição de ficar reclamando também não acho legal. Temos que sair dessa posição de reclamar e realizar, fazer. Já vi muita gente reclamando da falta de incentivo, mas quando alguém pergunta quanto ela precisa e o que a pessoa quer fazer ela até gagueja. Você precisa saber o que você precisa, o que você quer. Você precisa saber qual o tamanho do teatro, o que você quer dizer... é uma via de mão dupla. Estava em Londres agora e vi uma mesma exposição que aconteceu aqui no Brasil, mas aqui eles colocam muito mais dinheiro e não se fala sobre isso. É preciso muito cuidado para responder isso. Eu tenho a companhia há 25 anos, montei a escola e mesmo assim não paro de dar duro. Acho que temos que brigar pelos nossos direitos e cumprir os nossos deveres. Temos que brigar, botar a boca no trombone, mas temos que traçar onde queremos chegar.

Você trabalha com o corpo, o que acha da polêmica da censura na arte?

Eu sou contra a censura. Acho um absurdo. Estamos vivendo um retrocesso, careta, mas é um retrocesso que o mundo inteiro está vivendo, de controle da liberdade. Eu sou a favor da liberdade artística, de comportamento, a liberdade social. É importante que as pessoas tenham o direito de se expressar individualmente. Cada um tem suas sexualidades, ideologias e ninguém tem nada a ver com isso. Mas isso não é à toa. No Rio de Janeiro, por exemplo, temos hoje um prefeito evangélico. Acho que um dos motivos desse retrocesso é a associação religiosa política, isso não pode existir. E não é só evangélico, falo de qualquer religião. Essas coisas precisam ser mais nulas, objetivas e pragmáticas. A espiritualidade, a religiosidade e o contato com o divino são necessários para suprir os desesperos da raça humana. Mas isso não pode ser associado a quantos hospitais ou escolas uma cidade vai ter.

Você foi a diretora de movimento da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos no Brasil em 2016. Como foi a experiência?

Eu brinco que a minha experiência olímpica foi a única e nunca mais. Tipo “Now or Never” (“agora ou nunca”). É incrível saber a quantidade de televisores que estavam ligados e participar de uma celebração que o mundo inteiro viu. E a Olimpíada não é em um país, é em uma cidade, e foi na minha cidade! A gente sabia que o Brasil estava recebendo a Copa do Mundo, e, em seguida, a Olimpíada, mas estava em crise e tinha a possibilidade de não dar certo. Mas o que é dar certo? Sempre achei que a gente ia fazer bonito. A abertura foi muito tensa. Um trabalho envolvendo situações politicas, muita gente mandando, ‘isso pode, isso não pode’. Pra mim foi incrível trabalhar com voluntários e toda aquela quantidade de gente.

Sobre o espetáculo “Cão Sem Plumas”. Por que escolheu um poema de João Cabral de Melo Neto?

João Cabral já faz parte da minha vida há muito tempo, desde a década de 80. Eu fui casada com um pernambucano (o fotógrafo Cafi), pai dos meus filhos. Eu tinha uns 19, 20 anos quando conheci João Cabral. É uma época importante, quando você está abrindo a cabeça. Em “Cão Sem Plumas” eu li que ‘O sangue de um homem é muito mais espesso do que o sonho de um homem’. Aquilo foi muito importante. Depois disso fui a Pernambuco muitas vezes, anos se passaram, fundei a companhia, fiz vários espetáculos e conheci muitas coisas. Até que caiu na minha mão novamente o poema. Quando reli foi devastador, um soco no estômago. Tem muito a ver com minha história. O poema fala sobre um homem enganado, roubado, de quem é tirado até o que ele não tem. Ao mesmo tempo, ele é um homem teimoso, guerreiro, resistente. A pele dele é a lama, o que ele bebe é o Rio Capibaribe, é a água dele. E aí eu resolvi falar sobre o rio, o ribeirinho, sobre essas pessoas.

E você percorreu as margens do Rio Capibaribe com sua equipe...

Descemos o rio por seis cidades. Em cada lugar realizávamos um sarau com artistas locais e participantes das oficinas que realizamos lá. Foi incrível porque íamos encontrando essas pessoas, com suas riquezas culturais. E acho que carregamos tudo isso, que nem o Rio Capibaribe, que nasce pequeno e vai crescendo. Isso aconteceu conosco. Começamos lá na nascente e viemos carregando tudo até chegar ao espetáculo. Demorei três anos e meio para fazer o “Cão Sem Plumas”.

Você já realizou tanta coisa que parecia impossível no palco. Ainda quer realizar algo que não conseguiu?

Meu maior desafio é fora do palco. É encontrar a cura para epidermólise bolhosa (EB). Eu tenho um neto que nasceu há 8 anos, que é a razão da minha existência. Eu falo nele e choro. Quando ele nasceu ninguém sabia direito o diagnóstico e eu descobri que no Brasil tem muita gente com essa doença, gente muito pobre, gente que não sabe nem o que é. Eu comecei a entender aí a importância da pesquisa, da ciência, da terapia genética, celular. Ele é o meu guerreiro, meu cão sem plumas. Quando reli “Cão Sem Plumas”, ele chegou dentro de mim de uma maneira diferente de quando o li pela quando mais nova. O Theo me fez uma pessoa melhor, mais inteligente, com maior capacidade de olhar não só para mim e par o mundo que me pertence, mas olhar para os indivíduos, para aquilo que não pode existir. Ninguém pode ser esquecido. Por isso meu maior desafio é fazer com que a terapia genética dê um passo. Eu só penso nisso. Nós somos cientistas. Quando fazemos arte estamos experimentando, caminhando para um mundo melhor.

SERVIÇO

“CÃO SEM PLUMAS”

Companhia de Dança Deborah Colker

Quando: 31 de março e 1º de abril. Sábado às 21h e domingo, às 19h.

Onde: Teatro Universitário, Ufes, Avenida Fernando Ferrari, 514, Campus de Goiabeiras, Vitória.

Ingressos: Setor A: R$ 65 (meia), Setor B: R$ 55 (meia). Mezanino: R$ 45 (meia).

Informações: WB Produções - Whatsapp (27) 99577-0137 ou pelo site wbproducoes.com.

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