Com a economia em crise, a Argentina continua provando ao Brasil que dá, sim, para fazer cinema de qualidade com pouco dinheiro. Quer exemplos? Dois longas-metragens bem acima da média saíram dos pampas para conquistar festivais mundo afora na temporada passada: O Anjo e Minha Obra-Prima, este em cartaz no Estado.
O Anjo, cinebiografia do serial killer Carlos Robledo Puch concebida por Luis Ortega com pimenta e sensualidade em uma interpretação magistral de Lorenzo Ferro , conquistou fãs apaixonados no Festival de Cannes. Por sua vez, o Festival de Veneza aplaudiu Minha Obra-Prima, mais uma comédia de costumes inteligente gestada na cabeça paranoica dos irmãos Andrés e Gastón Duprat.
São deles títulos originais, que passeiam entre a acidez social e a comédia rasgada, mas sempre recheada de ironia, como O Homem ao Lado (2009), Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto (2011) e O Cidadão Ilustre (2016), este último cultuado por aqui e representante da Argentina no Oscar 2017.
Em comum, os filmes dos Duprat (normalmente, Gastón dirige e Andrés faz o roteiro) não têm pudor em personificar o que há de pior na sociedade, como o escritor recluso que é perseguido pelos moradores de uma cidadezinha de forma grotesca por não aceitar bem uma homenagem, como visto em O Cidadão Ilustre.
Nesta mesma vibe politicamente incorreta, temos Renzo Nervi (em interpretação memorável do veterano Luis Brandoni), um artista plástico sociopata, recluso e inconformado com os rumos comerciais que a arte vem tomando.
Alex (Raúl Arévalo, também muito bem no papel), seu ex-agente, é tudo o que Nervi mais detesta: personifica o capitalismo voraz consumindo a arte, como o pintor adora defini-lo. Cultado e odiado na mesma intensidade, Renzo, um anti-herói quixotesco, sofre um acidente, o que traz Alex de volta para a sua vida.
QUESTIONAMENTOS
Dizer mais sobre a história pode atrapalhar o prazer de acompanhar uma trama deliciosa, recheada de humor e críticas sobre a superficialidade do mercado cultural. Como visto no também excelente The Square: A Arte da Discórdia (2017), vencedor da Palma de Ouro, há o questionamento sobre o que é arte, sua importância, e a forma como ela é consumida.
Ninguém é poupado das críticas. Como uma metralhadora giratória, os Duprat satirizam os marchands, que querem ganhar dinheiro a todo custo; os donos de galeria, sempre querendo passar alguém para trás; e o público, que, segundo o filme, nem sempre sabe apreciar a boa arte. Em alguns casos até prefere ser enganado para não parecer desinformado.
Renzo destila seu veneno em frases impagáveis, do tipo: para ser um artista de sucesso é necessário ser ganancioso e egoísta, ou quem faz arte não sabe fazer outra coisa ou tem algum tipo de deficiência, ou mesmo faço algo perfeitamente inútil e também não interessa a ninguém.
Pode soar agressivo, ou de mau gosto, mas a atuação acima do tom de Luis Brandoni é proposital e faz de Minha-Obra Prima uma comédia impagável.
O roteiro analisa de forma cirúrgica o métier das artes. Não poderia ser diferente, afinal, Andres Duprat, além de escritor, é diretor do Museu Nacional de Belas Artes da Argentina. Isso contribui para um dos vários méritos do filme, que é fugir da caricatura por mais que as situações apresentadas no decorrer da trama discorram para o exagero. Um humor que será melhor digerido por paladares mais refinados, como uma boa obra de Andy Warhol.
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