Publicado em 13 de março de 2021 às 12:50
- Atualizado há 5 anos
A venda recente de um arquivo JPG por cerca de R$ 387 milhões marcou a primeira vez que uma casa de leilões tradicional comercializou uma obra de arte totalmente digital.>
Isolado, o fato já tornaria histórica a colagem "Todos os Dias: Os Primeiros 5.000 Dias", do americano Beeple, uma reunião de imagens postadas online por ele desde 2007, muitas delas alusões a acontecimentos políticos da última década.>
O pregão da Christie's rompeu, porém, uma outra barreira, também inédita -estabeleceu um valor recorde para uma nova categoria de arte que explodiu nos últimos meses. São ilustrações, GIFs, animações, vídeos e músicas associados à tecnologia blockchain e vendidos com um certificado de autenticidade digital, o NFT, ou token não fungível, da sigla em inglês.>
Na vida "real", uma obra de arte tem mais valor caso seja única. A lógica não é aplicável, porém, a um trabalho feito no computador -a internet é, afinal, conhecida pela cultura do copiar e colar, e imagens, músicas e vídeos são baixados e replicados em diversas plataformas.>
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"A obra de arte geralmente é apenas um arquivo digital tradicional armazenado num site. Não é rara ou escassa", diz Paul Ennis, professor de negócios do University College de Dublin. A escassez está na autenticação do trabalho na rede blockchain, o tal NFT, acrescenta.>
A criptoarte é comercializada em plataformas como Open Space, Rarible e Makersplace em ethereum, a segunda moeda virtual mais popular depois do bitcoin -alguns sites também aceitam pagamento em dólar no cartão de crédito.>
Para navegar por essas galerias virtuais, é preciso entender de criptomoedas e decifrar uma série de termos em inglês dos mercados financeiro e de tecnologia, não do mundo da arte, já que os produtos à venda não são pinturas, mas sim animações em 3D e arquivos com extensão MP4. Uma dessas plataformas leiloou o conhecido GIF do gatinho "Nyan Cat" no final de fevereiro, por R$ 3,3 milhões.>
Nesses sites podem ser comprados, por exemplo, os rostos pixelados da série "Cryptopunks" -que iniciou a febre toda e saem em média por 13,4 ethers, em torno de R$ 127 mil cada um-, e também trabalhos de artistas em ascensão no meio, como os brasileiros Monica Rizzolli, Tony de Marco e Uno de Oliveira, estes com preços bem mais modestos, oscilando entre 0,5 e 2 ethers.>
A taxa para uma obra ganhar o certificado NFT e poder ser vendida gira em torno de R$ 557, diz Oliveira. Uma vez que o item é comprado, o dinheiro cai na conta em minutos e o artista fica com uma porcentagem maior do que se vendesse seu trabalho por uma galeria de arte tradicional, ele afirma. Além disso, o pagamento é em dólares, vantajoso num momento de forte desvalorização do real.>
Todas as transações são públicas e não podem ser alteradas -características do blockchain-, e os sites trazem um gráfico onde se vê a valorização ou depreciação cambial de um criador, como a ação de uma empresa.>
Oliveira acaba de criar animações em preto e branco para uma série de temas instrumentais compostos por André Abujamra, um dos primeiros músicos brasileiros a abraçar o formato NFT, nas quais o traçado pontilhado de um rosto se mexe conforme a música. Abujamra diz achar bem-vinda a desburocratização desse universo e celebra o que chama de "descentralização" do mercado de arte.>
Se o leilão da Christie's parece selar o casamento dos mercados de arte online e offline, esse matrimônio já havia sido feito pela indústria da música há alguns meses. O mercado NFT é dominado por grandes nomes da eletrônica, que lançam vídeos curtos sonorizados, como no caso da canadense Grimes, ou só cartas virtuais colecionáveis, a exemplo do produtor de house progressivo Deadmau5.>
Os fãs de música eletrônica, sobretudo do estilo EDM, são mais envolvidos com arte em blockchain do que os de rock, afirmam Lalai Persson e Bia Patolli, consultoras de música em criptoarte. "É uma galera muito mais digital", diz Persson. No mais, o EDM está geralmente atrelado a algum elemento visual, facilitando a sua comercialização em plataformas de NFT, segundo ela.>
É possível lançar um disco com certificado NFT e inclusive entregar uma versão em vinil para os ouvintes com uma chave vinculada à rede blockchain, como fez com seu último álbum a banda de indie rock Kings of Leon. Mas essa é uma visão limitada dos potenciais da cripotarte, segundo as consultoras.>
Por que, então, os fãs pagariam mais de US$ 60, ou R$ 332, por um disco do Kings of Leon vendido em ethers se podem ouvir as canções quase de graça no streaming? Porque é uma maneira de financiar os artistas diretamente e de ter certeza de que o dinheiro está caindo no bolso deles, responde Gabriel Aleixo, desenvolvedor de negócios da rede em blockchain Hathor.>
E há outro fator --esse mercado mexe com a subjetividade humana, já que os altos valores pagos por criptoarte trazem consigo capital social e status, como se os compradores fizessem parte de um clube.>
O mercado de NFTs explodiu, segundo Aleixo, devido ao influxo de dinheiro de investidores que lucraram com a valorização de moedas virtuais como o bitcoin e a ethereum, e têm agora verbas disponíveis para gastar. Ou seja, há um público comprador ligado à tecnologia que não necessariamente faria negócios com um galerista.>
Se a bonança financeira estimula artistas novatos, por um lado, por outro ela também reproduz a especulação do mercado de arte tradicional, em que endinheirados arrematam, por preços acessíveis, obras de artistas iniciantes e as põem à venda logo em seguida, cobrando valores muito maiores.>
Ennis, o professor da universidade de Dublin, diz acreditar que essa bolha especulativa vai passar e que a criptoarte começará a ser usada para criticar os excessos das moedas virtuais das quais se alimenta, além de ser empregada de modos inovadores.>
"Artistas tendem a ver o que não podemos enxergar bem e acredito que eles verão potenciais reviravoltas estéticas no NFT que ainda não podemos conceber.">
- Uma empresa de blockchain comprou uma obra de Banksy, o mais caro artista de street art do mundo, e a queimou durante uma live transmitita há poucos dias pelo Twitter. Mas o trabalho não foi "perdido". A performance serviu, na verdade, para tornar um múltiplo da série "Bansky Morons" num trabalho vendido com NFT, comercializado por mais de quatro vezes o valor original;>
- Nem só de arte vive o mercado de NFTs. Um vídeo do astro do basquete Lebron James fazendo uma cesta foi posto na rede blockchain e vendido por mais de R$ 1 milhão; você pode ver de graça no YouTube;>
- São grandes os desafios para entrar nesse universo. Além dos preços em dólar, um leigo precisa aprender a negociar em criptomoeda e a navegar em sites em inglês recheados de termos dos mercados financeiro e de tecnologia, não da arte;>
- Isso vale também para os criadores. "O artista que trabalha com esse tipo de produção não tem como se dissociar do conhecimento técnico-científico. Não tem essa coisa 'você é de exatas, você é de humanas'", diz a artista-programadora Monica Rizzolli.>
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