> >
Para a História: ES tem uma mulher negra à frente do governo

Para a História: ES tem uma mulher negra à frente do governo

No Legislativo, no Judiciário e no próprio Executivo, mulheres e negros são sub-representados. "Isso traz uma responsabilidade e traz um certo orgulho para mim", afirma Jacqueline Moraes. Ela substitui até a próxima sexta (27) governador Renato Casagrande

Publicado em 20 de setembro de 2019 às 06:01

Ícone - Tempo de Leitura 0min de leitura
Ilustração. (Amarildo)

Hoje vamos falar de outra assunção. Este 20 de setembro é um dia histórico para o Espírito Santo. Não se trata de jogar confetes, mas de fazer o registro exigido pelo ineditismo do fato: pela primeira vez em 130 anos, desde a proclamação da República, em 1989, o Estado terá uma mulher sentada na cadeira de governadora.

Às 13 horas, Renato Casagrande (PSB) transmitirá o cargo à vice-governadora Jacqueline Moraes (PSB), que, em sua primeira interinidade, será a governadora em exercício até o próximo dia 27, enquanto o titular, um típico ítalo-brasileiro, representará o Estado em uma feira de mármore e granito na Itália.

Se quisermos ir um pouco mais longe, podemos dizer que, desde o “descobrimento do Brasil”, Jacqueline é só a segunda mulher a assumir o posto de maior autoridade no comando do Espírito Santo. A primeira e única foi Luiza Grimaldi, mas isso lá nos tempos das capitanias hereditárias. Viúva de Vasco Coutinho, a “capitoa”, termo consagrado na época – e usado no título de um romance da escritora Bernadette Lyra –, assumiu o governo da então capitania do Espírito Santo em 1589.

Agora, a nova “capitoa” tem consciência da dimensão histórica de que se reveste o fato. “O coração está acelerado, porque não deixa de ter a emoção implícita, por eu ser a primeira mulher, na história do Espírito Santo, desde a redemocratização”, afirma Jacqueline, indo pouco longe no tempo. “Isso tudo traz um sentimento de entrar na História. Eu já me deparei sozinha me perguntando: meu Deus, o que é isso? Entrar na História... Saber que, daqui a 150 anos, alguém vai ler sobre você em algum lugar.”

A assunção de Jacqueline também se reveste de importância simbólica por outro aspecto. Ela não é só a primeira mulher a assumir, mesmo que por poucos dias, o cargo de governadora do Espírito Santo no Brasil República. É, também, a primeira mulher negra a se sentar na cadeira. E a única pessoa declaradamente negra a ocupar o cargo até hoje, além de Albuíno Azeredo, governador de 1991 a 1995.

A relevância disso está em cinco palavras: representação de minorias no poder. Minorias na concepção sociológica, e não a matemática, do termo. No Espírito Santo, há mais negros que brancos. Há mais mulheres que homens. Segundo a Pnad/2017 do IBGE, o Estado tem 60,3% de habitantes que se declaram “negros” (soma de “pretos” e “pardos”).

Mas, nos espaços de poder – ou “locais de fala”, como sublinha Jacqueline –, há uma flagrante sub-representação desses estratos sociais. No Tribunal de Justiça do Estado, entre 28 desembargadores, há três mulheres. Na Assembleia Legislativa, entre 30 deputados, apenas três são mulheres.

Onze deputados estaduais se declaram “pardos”, mas, autodeclarado “preto”, há somente um parlamentar: Marcos Mansur, do PSDB. Tomando por base a autodeclaração à Justiça Eleitoral dos 44 candidatos eleitos para os vários cargos em disputa pelo Espírito Santo em 2018, só mesmo Mansur e Jacqueline são “pretos”.

No próprio governo Casagrande, dos 24 colaboradores com status de “secretário(a) de Estado”, não há nenhum visivelmente “preto”. Com base em livre conclusão visual, o colunista diria que, talvez, o de Segurança, Roberto Sá, e o procurador-geral do Estado, Rodrigo de Paula, possam ser considerados “pardos”.

Lembremos, ainda, que o Espírito Santo é, tristemente, uma das unidades federadas que mais mata mulheres “por serem mulheres”: de acordo com dados da Sesp, até agosto deste ano, houve 23 casos de feminicídio em solo capixaba, ante 21 no mesmo período em 2018, o que mostra a renitência desse flagelo social. Em 2013, Jacqueline era vereadora em Cariacica quando o ES ocupou o topo do ranking do feminicídio no país, segundo dados do Atlas da Violência.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, o ES foi proporcionalmente, em 2018, o 9º Estado com maior incidência desse crime, com 1,5 feminicídio para cada cem mil habitantes (a média nacional no ano foi de 1,1).

Quando se faz o corte por etnia, percebe-se que o problema atinge destacadamente mulheres negras: também de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, das 1.206 vítimas de feminicídio no Brasil inteiro em 2018, 61% eram negras.

Jacqueline não está alheia a esses fatores. Perguntamos à hoje governadora se, além da evidente questão de gênero, ela também realçaria o fato de ser negra e se tem isso em mente como algo que lhe confere uma responsabilidade ainda maior. Ela respondeu sem hesitar:

“Sim! Nós precisamos pensar que todo direito humano funciona através da representatividade e do local de fala. Então, poder estar representando uma parcela da população, que são as mulheres, e uma parcela da população, que são os negros, os jovens negros, as mulheres negras, os negros em geral, que muitas vezes não ocupam espaços de fala e de representatividade... Isso tudo traz uma responsabilidade e traz um certo orgulho para mim, como pessoa, de saber que eu preciso dar o meu melhor. Eu preciso que essa representatividade aumente e eu preciso também mostrar competência naquilo que podemos fazer, para que esse espaço seja aberto para qualquer mulher e jovem negro que queira um dia ocupar um espaço como este."

A partir de hoje, o espaço é ocupado por ela.

JUVENTUDE NEGRA EM EXTERMÍNIO

Lembremos, ainda, a violência que se abate sobre a juventude negra no Brasil, e particularmente, no ES. Em nosso Estado, um jovem negro (de 15 a 29 anos) tem 5,5 vezes maior probabilidade de ser assassinado do que um jovem branco na mesma faixa etária (fonte: Unesco/2017).

A passagem de Jacqueline pelo cargo de governadora em exercício coincidirá com a VIII Semana Estadual de Debate contra o Extermínio de Jovens, lançada nesta quinta-feira (19) no Palácio Anchieta, pouco antes de ela atender a coluna.

Este vídeo pode te interessar

Durante os próximos dias, mais de 400 jovens farão rodas de conversa sobre o tema em vários espaços, inclusive no Palácio Anchieta. Segundo a secretária estadual de Direitos Humanos, Nara Borgo, foi coincidência mesmo, por causa do Dia da Juventude do Brasil, comemorado no dia 22 de setembro (domingo). Jacqueline garante: participará de várias atividades da Semana.

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais