É médico, psiquiatra, psicanalista, escritor, jornalista e professor da Universidade Federal do Espírito Santo. E derradeiro torcedor do América do Rio. Escreve às terças

Entenda seus segredos: na pandemia, todos se transformam em um paciente

A presente pandemia, impregnada de ridículos argumentos,  indica a necessidade de espaços públicos abertos onde se processe uma reflexão analítica especial

Publicado em 03/08/2021 às 02h00
Em meio à pandemia de coronavírus e o isolamento social em casa
A pandemia de coronavírus e o isolamento social em casa. Crédito: iStock/Divulgação

Outro dia, quando recomecei a trabalhar no consultório psicanalítico, espaço que facilita o paciente a se interpretar, com alguma ajuda minha, perguntas e respostas que sempre me pareceram óbvias demais nas técnicas comportamentais, eu já quase abri mão da interpretação, e tentei mirar magicamente o inconsciente, a hóstia consagrada e benta por Freud.

De repente, flagrei-me aconselhando, baseado na minha própria experiência e outros dados concretos e lógicos, especialmente minha formação e análise com brilhantes didatas, como se fosse um “behaviorista” pragmático.

Quase nenhum trabalhador da área pode ignorar ou negar a existência do Inconsciente, mágica rara lapidada por Freud, Melanie Klein, e todos os deuses desta função que nos completa, que abastece e captura o pensar a dois. Entretanto, a Terapia Comportamental e seu seu jeito de ser usada poderia ser mais veloz.

Nos anos 50 e 60, auge da discussão sobre o modelo do consciente e inconsciente, que chegava a ocupar os Estados Unidos, principalmente na programação de rádio e na adolescente TV, surgiam debates pró e contra os dois modelos que julgávamos os principais.

Carl Rogers criou a Terapia Centrada no Cliente. E o behaviorismo, em oposição, obedecia à lei de B.F. Skinner. Aos poucos foram aparecendo métodos e técnicas igualmente inteligentes que nos arrebatou a atenção e o espírito tais como a Gestalt, proclamada pelo suiço Fritz Perls, que dava, por exemplo, como manobra de técnica a tarefa do paciente sonhador interpretar seu próprio sonho ou parte dele. Uma genialidade.

O pragmatismo, e outras competências, fez com que a Psiquiatria Clássica liderasse com convicção e apoio os hospitais, as casas e as leis para internar quem “sofria da alma”. Necessitado ou não de isolamento. Considere que é preciso levar em conta, principalmente, a ação política e pesquisadora de Phillipe Pinel e a chegada dos psicofármacos – alguns inevitáveis em casos graves, repletos de delírios, alucinações e outros processos gravíssimos como o antipsicótico Haloperidol.

E a psicologia já enriquecida com a visão psicossomática foi ocupando espaço nos hospitais e clínicas de atendimento. Nem se pensava em terapia domiciliar. Havia uma clara necessidade de isolar a diferença. Isso só se reverteria ou amenizaria com o recente Movimento da Luta Antimanicomial no mundo inteiro.

Nesse campo, a psicologia psicanalítica pôde mostrar sua utilidade, como faz – quando faz – até hoje. É bom lembrar que para Freud existem três Pessoas num grupo de atendimento, uma das quais encontra-se “escondida” mundo afora do consultório analítico ou psiquiátrico. Se há apenas duas pessoas envolvidas é porque houve uma regressão do paciente identificado no setting analítico. O setting representa a mãe com a sua técnica e o paciente é um bebê. A terceira pessoa, somos todos nós. Este é um desenho de Donald Winnicott.

Winnicott foi assim um dos autores que mais acentuaram a importância do ambiente na prática analítica como atributo indispensável ao trabalho interpretativo propriamente dito que completa o ambiente terapêutico.

Na verdade, ao mesmo tempo que se defende em psicoterapia a prática onde deveria haver normalmente a vida real, onde está o jogo, o novo, o criativo, a descoberta mútua, além da preocupação em construir um lugar que protegesse o paciente do aniquilamento social, deve haver um sistema que defenda o Outro - no caso, um dito “louco”.

A ausência da vida cultural imposta por algumas epidemias é por si só o indício de que todos, sabendo ou não, transformam-se em um paciente, que deve ser acolhido por um grupo terapêutico que inclui toda a sociedade consciente.

Na presente pandemia, impregnada de ridículos argumentos, inclusive roubos, indica a necessidade de espaços públicos abertos onde se processe uma reflexão analítica especial.

Dorian Gray, meu cão vira-lata, está visivelmente cansado.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

A Gazeta integra o

Saiba mais
Saúde mental Psicologia Pandemia

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.