Mariana Reis é mestranda em Sociologia Política, Administradora , TEDex, Colunista e Personal Trainer

O ano recomeça e as lutas também

O ano é novo, mas as práticas de exclusão por parte do governo são velhas. A avaliação da deficiência por si só não é capaz de compreender o cidadão em sua inteireza. Por isso, os protocolos utilizados precisam ser atualizados, alterados ou substituídos

Publicado em 04/01/2022 às 02h00
Mulher na cadeira de roda
Recomeçar com Mario Quintana este novo ano e a primeira coluna de 2022 é celebrar com mais esperança o que está por vir. Crédito: Freepik

“Bendito quem inventou o belo truque do calendário, pois o bom da segunda-feira, do dia 1º do mês e de cada ano novo é que nos dão a impressão de que a vida não continua, mas apenas recomeça...”

Recomeçar com Mario Quintana este novo ano e a primeira coluna de 2022 é celebrar com mais esperança o que está por vir. É encarar com uma dose extra de coragem as atitudes fantasmáticas do governo em relação às políticas públicas para a pessoa com deficiência.

Novo no calendário, velho na prática da inclusão

Dentre alguns retrocessos já escritos aqui em textos anteriores, o que trago hoje trata de mais um passo à beira do precipício nas perdas dos direitos e da incompreensão sobre diversidade humana e deficiência: Avaliação Biopsicossocial da Deficiência.

O ano é novo, mas as práticas de exclusão por parte do governo são velhas. A avaliação da deficiência por si só não é capaz de compreender o cidadão em sua inteireza. Por isso, os protocolos utilizados precisam ser atualizados, alterados ou substituídos.

É lamentável experimentar a gravíssima vedação da participação do Conselho Nacional nesse documento e principalmente, das próprias pessoas com deficiência, em relação ao modelo de avaliação. Todo esse processo põe em risco e até mesmo impede um futuro com mais dignidade e justiça para os mais de 46 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência.

Transformar, questionar, lutar sempre

Essa atitude um tanto quanto cruel com o movimento inviabiliza a participação das organizações representativas e dos conselhos, na regulamentação do artigo 2° da Lei Brasileira de Inclusão. Além do grupo de trabalho formular o documento, o governo decidiu não compartilhar o teor do relatório. E sabemos que circulam duas propostas de instrumentos de avaliação.

Estamos em constante transformação, inclusive das concepções sobre as pessoas com deficiência que foram passando por modificações, os novos conceitos apontam a deficiência como produto do meio. Ou seja, seguindo o conceito trazido pela Convenção Internacional.

Um dos instrumentos que busca embasar o médico e os profissionais da saúde é a CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde), que identifica e tipifica questões relacionadas à saúde e doenças através de códigos. A evolução e os debates em relação a este instrumento deu origem a um outro mecanismo de classificação: a criação do CID 11, que entra em vigor neste ano. Porém a maior conquista é a consideração da CIF (Classificação Internacional de Funcionalidade Incapacidade e Saúde). Este instrumento tem como objetivo a estrutura corporal e o aspecto funcional, isto é, na resposta gerada pelo corpo do indivíduo, colocado em interação com o ambiente, com as barreiras. Aqui está mais uma vez a Convenção sendo o norte para a elaboração das políticas.

O modelo biopsicossocial que chegou ao Brasil em 2011 é o que de fato nos interessa. Essa avaliação deve ser pautada na Lei Brasileira de Inclusão, na Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e nos princípios constitucionais. Não esquecendo do modelo social de deficiência e não ao modelo médico.

Avaliação nota zero

Você acha que é certo, ou constitucional, criar uma regulamentação da avaliação da deficiência sem a participação das pessoas com deficiência? Acha cabível não disponibilizar as atas para a sociedade entre os documentos decorrentes do Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre a avaliação?

Não. Não dá para aceitar retirada de direitos, caso essa proposta misteriosa seja aprovada. Também não é coerente que quem elaborou tal documento seja vinculado ao Ministério da Economia, e da Cidadania, e não pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que tem a competência para gerir as políticas para as pessoas com deficiência. Sem falar no CONADE, Conselhos Nacional, eliminado de qualquer decisão e debate sobre o modelo de avaliação

Os tempos continuam turvos apesar das nossas forças revigoradas pela virada.

O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos continua sem nos dar sinal de diálogos, tampouco sobre uma consulta pública do modelo equivocado e inconstitucional de avaliação.

Pelo país vários manifestos já foram escritos para expor as razões que impedem a aprovação desse modelo de avaliação proposto e no qual não houve a nossa participação.

Um ano de luta pela frente

Para entender melhor, a visão da proposta atual é: um olhar sobre os corpos doentes e não doentes, capazes e incapazes, uma percepção médica limitante, lançando para o cidadão com deficiência a responsabilidade por não “caber” no social. E não do contrário, de uma percepção de um corpo social, dotado de direitos, desejos, autonomia e independência. Sem contar as atas do grupo de trabalho, formuladas no apagar das luzes, que permanecem na obscuridade. São tantas razões para não embarcar nesse retrocesso que até cansa argumentar. Enquanto as políticas do governo insistem nos limar do processo democrático, da nossa participação sobre o que diz respeito às nossas vidas, continuaremos ativos descendo mega rampas, saltando de paraquedas, escrevendo, estudando, pilotando jet, trabalhando, contribuindo, vivendo e, claro, sempre vigilantes para que o fogo das conquistas não se apague. Haja a tempestade que houver.

Enquanto existir vida haverá compromisso com a fatura e os erros de gestão traduzidas na exclusão das pessoas com deficiência em participar das questões que dizem respeito a elas, considerando a diversidade e os desejos de cada um. Existe desafio maior da vida?

O nosso esforço em propor diálogo, em lutar e em querer encontrar novos caminhos tem sido um escudo de resistência para uma vitória coletiva de muitas mudanças. Eu acredito. Nada sobre nós, sem nós. Que nunca nos afastemos do lema. Serão mais 365 dias de um calendário novo, de enfrentamento, e de renovação, para que a efetivação dos direitos da pessoa com deficiência se concretize. Não ao modelo de avaliação da deficiência proposto pelo Governo.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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