Por volta das cinco horas batia a sineta da escola. Mas, eu e os colegas com quem havia dividido à tarde, as brincadeiras e as histórias, tínhamos que ficar na sala de aula, esperando para sermos chamados pelo microfone. Porque só quando nossos pais ou responsáveis chegavam, é que anunciavam o nosso nome. Ah, nessa hora era a glória! No que diziam “Maria Sanz Martins”, meus olhos faiscavam de alegria, eu apanhava a merendeira e corria desembestada. Ufa, não esqueceram de mim!
Do lado de fora aguardavam, segurando sacos de pipoca e batendo papo, pais, avós, babás e a condutora da Kombi escolar, no meu caso. Mas eu ficava feliz mesmo assim, porque tudo o que eu queria era chegar em casa (ainda que depois de ter feito vinte e cinco paradas em seis diferentes bairros) para lanchar, tomar banho e ficar com meu irmão assistindo "Jaspion", contando os minutos para vê-los voltar do trabalho.
É que os meus pais sempre trabalharam fora, e desde muito cedo eu precisei compreender que aqueles eram pais “ocupados”. No fundo, eu bem achava o máximo ter uma mãe envolvida com artes e que oferecia coquetéis para exposições de quadros; e um pai sempre bem penteado, de terno e gravata, carregando uma maleta de couro e livros debaixo do braço. Eu não tenho dúvida de que foi a mistura dessas personalidades intrigantes que me ofereceu um lar, no mínimo, interessante, sempre cheio de cantos e contos para serem desvendados.
Sozinha em casa, ou, melhor dizendo, com a babá na cozinha ouvindo rádio, eu passava horas debruçada sobre a vitrola da sala, descobrindo os discos da minha mãe (foi precoce minha intimidade com Tina Turner, Donna Summer e Barry White) ou no escritório do meu pai, me pendurando nas prateleiras para alcançar os troféus e livros mais pesados, devorando enciclopédias e fazendo recortes desautorizados. E sempre foi assim: eles muito perto e, ao mesmo tempo, longe de mim.
Posso dizer que fui uma criança independente. Eu ia sozinha ao dentista, ao supermercado e ao cabeleireiro. Comprava meu próprio uniforme e fazia matricula na escola. Primeiro, transportada pela Kombi, depois pelo Sr. Jaime (motorista-personagem que faz parte da minha infância). Aprendi cedo a me locomover e a fazer escolhas “importantes” (só lembrando que naquela época aparelho celular ainda era um sonho mirabolante). Era eu quem decidia o que comer, aonde ir e o que vestir.
Detalhe: nessa fase eu ia às festas de aniversário como bem entendia e me lembro que aos sete anos cheguei a ir numa festinha vestida de skatista (de calça jeans e camisa de caveira), completamente diferente das outras meninas. Desse modo, “ser diferente” foi ficando normal para mim.
Perdi logo o medo de ser empurrada para o meio do palco; desenvolvi habilidade de improvisar e inventar histórias; e, para certas coisas, também posso dizer que fiquei metida a corajosa. Tsc, talvez essa liberdade que me foi ofertada, ou a presença-maciça que me foi subtraída, tenham me feito acreditar que amor e cuidado não têm espaço, nem exigem regras a serem cumpridas.
Como todo mundo sabe, a maturidade tem o projeto audacioso de construir a capacidade de convivermos com a ambiguidade da existência, que devora ao mesmo tempo que alimenta. E, naturalmente, também já crescemos sabendo que uma das partes mais complicadas desse projeto é a de nos libertarmos de nossos pais e de seus olhares proféticos.
Claro, como qualquer pai e mãe, os meus também idealizaram para mim um futuro cintilante. Mas, sem querer, eles me fizeram aprender a trilhá-lo a partir dos meus próprios tombos.
- Não, essa crônica não é só um balde de purpurina. É a verdade:
A admiração que sinto por essas pessoas tem um tamanho tão grande, que mesmo a léguas de distância, eles se fazem presentes em minhas atitudes a todo instante.
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De todo modo, acho que continuo sendo uma criança grande. Sempre ansiosa pela hora de entrar na Kombi que, apesar de fazer inúmeras paradas, na hora certa, há de me levar de volta para casa.
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