É artista e escritora, e como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. É usuária das medicinas da palavra, da música, das cores e da dança

Crônica: Anotações de um desabamento

Engraçado, enquanto estamos fazendo isso, parece que o universo apronta de propósito: coloca no caminho uma armadilha só pra lembrar que (sempre) o que importa é o famigerado amor-próprio

Publicado em 13/02/2022 às 02h00
castelo de areia
Ora, meus castelos até podem ser de areia, mas eu os crio desde a fundação. Crédito: Shutterstock

"Às vezes eu esqueço que as pessoas podem ser feijão em pote de sorvete". Do filósofo contemporâneo, Chapolin Sincero.

Diz que toda traição é uma espécie de revelação. Um pano que cai e expõe: a verdade não coincide com a ilusão. Pra mim, que costumo ter um enorme apego ao que imagino, dói bem doído.

Ora, meus castelos até podem ser de areia, mas eu os crio desde a fundação. Cada pilar e cada alicerce donde habitam meus sonhos, tem uma lógica própria, um sentido, uma lembrança, um calçamento na emoção. E, não por outra, quando uma onda de verdade nova, repentina, inesperada, vem e desmancha, arde, me consome – porque em algum ponto eu me incorporei à construção.

Tenho tendências nostálgicas e melancólicas, me apego às histórias, à poética dos detalhes, à estética das memórias. E assim, conectada com esse terceiro elemento, fantasmagórico, alimentado pela minha invenção do outro, vou me esquecendo de mim, pouco a pouco.

De modo que no exato momento em que tudo desmorona, surge uma pergunta óbvia: mas por que tanta dedicação e tanto tempo edificando pra fora?

(Talvez porque se relacionar como o outro seja mais fácil do que lidar consigo.)

Engraçado, enquanto estamos fazendo isso, parece que o universo apronta de propósito: coloca no caminho uma armadilha só pra lembrar que (sempre) o que importa é o famigerado amor-próprio.

Nota: Se você não foi até o mercado e não comprou sorvete, então não tem milagre às duas da manhã, é feijão!

Amar a si mesmo não é fácil, dá trabalho, mas é a única fórmula. Porque deixar esse serviço exclusivamente para o outro pode ser (sempre é) arriscado. Sobretudo porque corremos o risco de o outro também não saber como amar a si mesmo. E aí o resultado é um nó! Um jogo de empurra da responsabilidade – quando na verdade, depois dos 17, fica claro: não dá pra delegar a própria felicidade.

Mas, mesmo com a maturidade, vira e mexe, a gente escorrega, coloca a venda e entrega a mão pra fada da ilusão. E vamos concordar que é uma delícia. Mas eu que já caí da torre algumas vezes na vida, trago sobre esse assunto, uma verdade ardida: o amor do outro não vai te salvar.

O que ele pode fazer é segurar sua mão enquanto você se salva. Estar ao seu lado e te trazer para a realidade, amortecendo o impacto. Te abraçar apertado, em silêncio, por meia hora, enquanto você chora. Te olhar nos olhos e te dizer toda a verdade.

O amor do outro é isso, alguém que esteja ao seu lado, refletindo o amor que você sente por si.

Aprendi, mas foi caro, que fique dito. Hoje entendo que cada escolha, cada tropeço e cada traição, foram exatamente o que eu precisava para aprender e evoluir, melhorar, crescer e me tornar essa que quero ser. Porque a descoberta das coisas que nunca vi me elevam, e é assim que deve ser.

Mesmo que seja feijão congelado.

(Que no caso, bem pode dar um belo, picante e pelando, caldo).

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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