Hoje não me estenderei muito.
Você, que vai passar a virada de ano na praia ou que já está à procura de uma roupa branca para os festejos, saiba que está reproduzindo um costume oriundo dos terreiros. Sim! Prática criada por aqueles que são constantemente perseguidos durante o ano e sistematicamente atrelados às maldades da fé.
Tudo começou na década de 1950, no Rio de Janeiro, em movimento idealizado por Tancredo da Silva Pinto, o Tata Tancredo. Uma autoridade entre as religiões afro-brasileiras, ele fundou, nesse mesmo período, a Federação Umbandista de Cultos Afro-Brasileiros, instituição que tinha como objetivo fortalecer as relações entre terreiros para que pudessem resistir às grandes perseguições que a Umbanda sofria em vários estados brasileiros.
Entre diversas medidas, acreditava que festas públicas auxiliariam na desmistificação de falácias negativas atribuídas aos terreiros e que, fazendo suas giras em locais públicos, mostrariam ao povo toda riqueza e pluralidade existentes na Umbanda e, assim, propagaria uma nova visão sobre a religião.
Foi seguindo tal teoria que Tata Tancredo começou a realizar giras na praia de Copacabana, aos 31 de dezembro, data em que os terreiros costumavam cultuar Iemanjá e as divindades do mar, pedindo por um novo ciclo de prosperidade. Ali mesmo, nas areais, realizavam seus trabalhos, com direito a tambores, imagens, incorporação e tudo mais que acontecia nos terreiros, com a diferença de ser ao livre, para que todos pudessem presenciar e se despir do preconceito enraizado. Logo após os trabalhos religiosos, o ajeum — cerimônia de se reunir para se alimentar — era feito e o novo ano era rompido com muita festa e axé.
O objetivo de Tata Tancredo pode até ter alcançado a eficácia em alguns que presenciaram suas giras públicas, mas o ato de passar a virada de ano na praia, de branco e finalizando com comida e festa foi severamente sequestrado pela comercialização. Inicialmente pelas redes hoteleiras cariocas que viram naquilo um potencial para seduzir os gringos. Depois, se espalhando pelo Brasil, por todo um sistema comercial que transformou a prática em um business digno dos grandes festivais.
Grandes eventos realizados na praia no réveillon tornaram-se prática quase que obrigatória em cidades litorâneas. Os trajes brancos, herança das vestimentas tradicionais de terreiros, passou a simbolizar a paz universal e alguns até inventaram significados para outras cores como amarelo e vermelho, estendendo o uso para as roupas íntimas.
Passaram a pular sete ondas sem saber o real significado.
Iemanjá e as entidades do mar viraram coadjuvantes ou nem nas festas se fazem presentes.
Muitos, de branco, o branco da religião afro, marcam o fim de um ano em que passaram os 365 dias reproduzindo práticas que contribuem para a demonização e perseguição ao povo de terreiro. E o fazem pedindo uma paz que se faz cada vez mais distante daqueles que criaram tudo isso.
Nos últimos dados fornecidos pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, de 2023 para 2024 houve um aumento de 80% nos casos de intolerância religiosa, casos em que, obviamente, a maioria esmagadora tem como vítimas praticantes da umbanda e do candomblé.
Olhando para o nosso Estado, a coisa não muda de figura. Ao mirarmos a história, todas as menções que temos na bibliografia tradicional e em jornais antigos capixabas tratam as religiões afro-brasileiras como algo subalterno e, por diversas vezes, como algo atrelado ao mal. Os relatos mais extensos de antigas práticas de religiões afro no Espírito Santo encontram-se nas páginas policiais. Termos como “reuniões suspeitas” e “cangerês malignos” eram usados para designar as manifestações.
Na atualidade, não precisamos ir muito longe. Em 2024, um terreiro em Vila Velha foi cruelmente incendiado.
Em 2025, perseguições agressivas foram feitas por líderes do legislativo, que viam em exposições com temáticas africanas uma potente ameaça à formação da família tradicional cristã.
Fatos somados e atrelados a um preconceito que está sistematicamente enraizado no cotidiano da nossa sociedade.
Aos que vestem branco e vivem cotidianamente os perigos de viver em um país que consome a negritude na mesma medida que a demoniza, um 2026 de muita paz e axé!
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