Os adeptos de uma cidade pulsante e que entendem a rua como um palco de cultura e entretenimento entram no mês de dezembro com um pingo de nostalgia melancólica.
Digo isso porque, em tempos distantes, as ruas do Centro Histórico de Vitória transformavam-se em uma grande roda de samba a céu aberto, seguindo um movimento de celebração que acontecia em diversos lugares do Brasil. Com várias rodas acontecendo simultaneamente em pontos estratégicos e um palco principal que, ao fim das rodas, recebia uma atração nacional, Vitória celebrava, de forma digna e à altura da sua história no segmento, o Dia Nacional do Samba.
Assim como diversos elementos populares da nossa história, as ligações visíveis do samba florescem na Bahia e no Rio de Janeiro, tendo o Espírito Santo emergindo como um vácuo ou um deserto de culturas diaspóricas.
Acontece que a figura principal presente na origem do Dia do Nacional do Samba compõe um dos indícios que comprovam que as terras capixabas, desde os primórdios do samba, já foram palco da manifestação e analisá-la nos leva a compreender o desenvolvimento do samba em nosso Estado.
Então, vamos a ela.
O Dia Nacional do Samba nasceu como uma data municipal e, para entendê-la, é preciso conhecer a figura de Ary Barroso. Um mineiro, nascido em 1903 na cidade de Ubá, que mudou-se para o Rio de Janeiro na juventude para cursar Direito. Por lá, desenvolveu sua vocação para a boemia e composição de músicas populares.
Entre obras como "Aquarela do Brasil", "Camisa Amarela" e "Rancho Fundo", Ary compôs, sem ainda ter ido à Bahia, o samba "Na Baixa do Sapateiro", que tinha a Terra de Todos os Santos como inspiração principal e que tornou-se um sucesso estrondoso de projeção nacional e internacional.
Em 2 de dezembro de 1960, Ary Barroso finalmente conheceu a Bahia e, em 1964, ano da sua morte, o vereador Luís Monteiro da Costa propôs que a data, como homenagem póstuma ao músico, se tornasse o Dia Municipal do Samba em Salvador. Das terras soteropolitanas as celebrações se alastraram pelo país até se tornar, em 2007, oficialmente uma data nacional reconhecida por lei.
O que poucos sabem é que, muito antes de visitar a Bahia, Ary Barroso já tinha vindo diversas vezes a Vitória, sendo uma atração corriqueira no antigo Club Vitória, aristocrática instituição associativa localizada no Parque Moscoso. Por lá, tocou em festividades cotidianas, encontros políticos e celebrações de virada de ano.
Mas como por aqui se apresentou apenas para a elite em ocasiões que escancaram a desigualdade social e racial da nossa sociedade, usarei sua presença apenas como propulsora para se pensar o samba em nossas terras.
Primeiramente, dizer o óbvio, que o samba é um filho da gente preta e que em tempos distantes da glamourização atual foi, na mesma medida, alvo de perseguição por causa da cor daqueles que o praticavam e um elo de sociabilidade e proteção desse mesmo povo.
Não preciso ir a outro Estado para explicar tudo isso.
Os primeiros registros de samba por aqui acontecem em locais que foram criados, ocupados e dominados por negros. Uma edição do jornal Província do Espírito Santo de 1885, por exemplo, diz que em tempos antigos, quando se encerrava a procissão de São Benedito, um grande samba acontecia na Igreja do Rosário dos Pretos, igreja construída e criada para a população negra da cidade. O responsável pela coluna não se intimidou ao destilar seu escancarado racismo ao se referir às manifestações como “rabugentas antigualhas” e afirmar que o samba “atordoava os ouvidos dessa gente paciente”.
Em tempos mais recentes, no século XX para ser mais preciso, era em comunidades periféricas que o autêntico samba rolava. Periódicos como Folha Capixaba e Diário da Manhã registraram batuques firmes sendo realizados em locais como Morro do Querosene (atual Morro da Piedade), Morro do Quartel (atual Morro do Moscoso) e Forte São João. Obviamente — e diferentemente dos sambas cantados por Ary Barroso no pomposo Club Vitória —, não é difícil encontrar relatos de perseguição às rodas e a encontros de sambistas nos locais e recorte temporal citados.
Trago aqui um que me foi passado pela própria vítima, Mestre Aroldo, primeiro mestre-sala da Unidos da Piedade. Segundo ele, em um carnaval dos anos de 1960, pronto para desfilar, foi preso ao descer o Morro da Fonte Grande, sem nenhum motivo aparente, a não ser pelo fato de estar trajado como o autêntico representante das massas perseguidas.
Aroldo só foi liberado porque praticamente toda a agremiação foi para a porta da delegacia e o delegado, em um lapso de sanidade, preferiu que o carnaval acontecesse nas ruas e não dentro de sua repartição.
Foi gingando para cima da perseguição que os sambistas do passado, entre batuques e pancadas, mantiveram o samba vivo e o transformaram no mais importante objeto de pertencimento e criação identitária das comunidades periféricas. Infelizmente, diante de tamanha importância e consequente capacidade de controle social, aos poucos ele foi sequestrado para ser usado com fins comerciais e políticos, a ponto de atualmente existir quem ouse dizer que ele não tem cor, apartando-o de raízes, pautas e outras culturas racializadas.
Há quem ache, também, que o samba só existiu na Bahia e no Rio de Janeiro e o que vivemos em terras capixabas é mera cópia dos nossos vizinhos.
Não caia nessa! O samba é filho das senzalas e dos barracos em que as mãos manipuladoras da pátria jogaram os negros deste país. Exatamente por isso, floresceu em praticamente todas as cidades que foram construídas pela mão de obra escravizada, e em Vitória não foi diferente.
Caso você, que até aqui chegou, presenciar neste próximo 2 de dezembro — ou em qualquer outra ocasião ao longo do ano — um samba sendo firmado em nossa cidade, lembre-se dos negros do Rosário, do Querosene, do Forte São João, de Mestre Aroldo e de vários outros negros e negras que enfrentaram a caça das autoridades para que hoje pudéssemos cantar, tocar e bater livremente um bom samba na palma da mão.
Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.
