Doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Movimento Negro Unificado – MNU e do Partido dos Trabalhadores

O que é racismo superestrutural?

A compreensão de inferioridade acerca das pessoas negras foi produzida e consolidada a partir dos locais aos quais elas foram submetidas por séculos; todo o aparato estatal foi utilizado para mantê-las nesses lugares

Vitória
Publicado em 29/03/2023 às 12h45

Sim. É isto mesmo. Racismo superestrutural! Diferentemente do conceito de racismo estrutural, aquele não se articula imediatamente ao senso comum, parece estranho à primeira vista, porque ao contrário da palavra “estrutura”, que usamos para definir diversas situações como “a estrutura da casa”, “a estrutura da ponte”, “a estrutura do edifício” etc., o conceito de “superestrutura” está mais restrito à área da teoria social.

Mas, veja, isso não quer dizer que o conceito de “estrutura” não esteja na teoria social, porém, o de “superestrutura” não é utilizado no dia a dia. Isso torna a expressão “racismo superestrutural” distante de uma compreensão imediata, porém, esta é a forma de fato da natureza do racismo, a despeito do outro ter se tornado domínio comum, ponto de consenso.

O Brasil como todos sabem foi construído através do trabalho de pessoas escravizadas. Elas eram principalmente negras, quando pensado os quase 400 anos de escravização. Durante todo esse tempo, a relação básica que existia por aqui era entre pessoas escravizadoras e pessoas escravizadas, evidentemente, essas últimas, na maioria das vezes, negras.

Portanto, a estrutura básica que existia era um sistema de exploração do outro através do trabalho escravo, ou seja, a relação social fundamental acontecia entre escravizadores e escravizados. Era nesse ambiente que as pessoas mantinham suas vidas, ainda que fossem em condições degradantes e subumanas, como no caso dos escravizados, e na condição de liberdade dos escravizadores.

Tudo isso ocorreu aqui, no que agora chamamos de Brasil, porém, antes foi colônia de Portugal, depois se tornou um império e só em 1889 passou a ser uma república. Mais ou menos nos moldes que estamos hoje.

Aquele primeiro ambiente que foi descrito acima, da relação entre escravizadores e escravizados, é onde acontece a vida prática. Ali chegavam pessoas sequestradas do continente africano e desembarcadas para trabalharem como escravizadas; pessoas nasciam, comiam, trabalhavam, ainda que forçadas. Esse ambiente de relações sociais da produção e reprodução da vida que é compreendido como estrutura. As relações sociais materiais.

Contudo, essas relações pressupõem outros elementos que são possíveis detectar desse período e até agora. Por exemplo, as mudanças que existiram de regime político, de colônia para império e depois para república; a ligação entre o Estado e a Igreja, determinando o que era condenável moralmente ou não e permitindo a escravização, entre outras coisas.

Todos exemplos colocados aqui, se observamos bem, são formas de consciência. Ou seja, eles são reais, influenciam a vida das pessoas, mesmo tendo sido criados por elas, mas, grosso modo, eles fazem parte da cultura em geral, da cultura de todos, naquele momento. Portanto, o Estado (independentemente do regime de governo), a religião, o sistema de justiça, todos compõem a superestrutura.

Na Esplanada dos Ministérios, manifestantes realizam protesto pró-democracia. Pautas como racismo e antifascismo compõem a agenda dos manifestantes
Na Esplanada dos Ministérios, manifestantes realizam protesto pró-democracia em 2020. Pautas como racismo e antifascismo compõem a agenda dos manifestantes. Crédito: Leo Bahia/Fotoarena/Folhapress

Tratando dessa forma fica mais fácil perceber que estrutura e superestrutura não são as mesmas coisas. Porém, é preciso dizer que, embora sejam partes diferentes da vida social, compõem o todo, a totalidade; uma não se sobrepõem à outra, tampouco há grau de hierarquia, de importância. E compreender essas diferenças é fundamental para o passo seguinte de percepção.

Diferentes grupos humanos lutaram entre si durante boa parte da história da humanidade. Em algum momento dessa história um grupo passou a dominar o outro numa escala fenomenal para subtrair riqueza a partir do trabalho alheio. Essa foi a forma, por exemplo, do início do processo de escravização, que começou lá em Portugal, mesmo antes da colonização do Brasil.

Já dissemos acima que esse processo foi muito violento. E precisava mesmo que fosse para conseguir dominar tanta gente que resistia fortemente à escravização. Contudo, é de conhecimento no campo da teoria social que a dominação apenas pela força não é o suficiente, é preciso produzir ou utilizar elementos da cultura para justificar a dominação.

Para isso a Igreja foi útil. Porque para a hegemonia do pensamento teológico, aquelas pessoas oriundas do continente africano eram hereges, não se convertiam facilmente ao cristianismo e por isso deviam sofrer para alcançar a salvação.

Importante chamar a atenção ao fato de que essa é uma dimensão superestrutural. Mais importante para um salto interpretativo é perceber que ainda não estamos falando de raça, pois ela surgiu mais ou menos no século XVIII, ligada à ideia do direito pela conquista, e se consolidou apenas no século XIX, como racismo científico.

Vejam que as transformações estavam ocorrendo no mundo e no Brasil. Enquanto a Europa já havia passado pelas revoluções burguesas, no Brasil, mudava-se o regime jurídico, com a Abolição e o advento da república, portanto, a superestrutura, mas a estrutura continuava a mesma, o país permanecia uma grande fazenda, onde os brancos mantinham-se a elite do país e as pessoas negras o povo.

Olhando com cuidado o que foi descrito acima, é possível perceber o seguinte: a estrutura social com base na exploração precisou de uma justificava, uma legitimação. Inicialmente ela foi a religiosa e posteriormente o racismo científico. Ambas estão na superestrutura, por isso o racismo é superestrutural.

Entretanto, sem a violência sistemática, colocando e impondo uma condição de quase subumanidade às pessoas negras, não teria sido possível construir os estereótipos (formas de consciência) em relação às pessoas negras.

Por fim, por que é importante saber que o racismo é superestrutural? A resposta é: sabendo como o racismo foi produzido, é possível decifrar a forma de acabar com ele. Isso quer dizer que as formas de consciência são construídas a partir das relações materiais.

A compreensão de inferioridade acerca das pessoas negras foi produzida e consolidada a partir dos locais aos quais elas foram submetidas por séculos; todo o aparato estatal foi utilizado para mantê-las nesses lugares. Por isso é tão difícil descontruir o racismo. Porque com o advento da Abolição a elite mobilizou o Estado para manter a estrutura de dominação e o racismo superestrutural foi uma das legitimações para isso. E, vejam, o que ainda é mais grave: a superestrutura tende a ser modificada de forma mais lenta do que as transformações da estrutura, pois ela pode se arrastar pelas tradições, pela cultura em geral.

Diante disso, fica evidente que o racismo é superestrutural! O racismo foi mobilizado num período específico para justificar a estrutura de dominação que se arrastou por séculos. Em determinado momento na colônia, depois no império e por fim na república. Em todos esses momentos históricos há a coincidência da dominação ser de brancos sobre as pessoas negras. A explicação passa pelo conceito de ideologia. Mas isso fica para um próximo texto.

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