É doutor em Letras, professor e escritor. Seus textos tratam de literatura, grandes nomes do Espírito Santo e atualidades. Escreve quinzenalmente às segundas

"O agente secreto": que venha o Oscar!

O filme é caleidoscópico e sua compreensão demanda a interpretação de signos, metáforas e referências

Publicado em 17/11/2025 às 04h30

* Este texto pode conter spoilers sobre o filme

Fui ao cinema ver “O Agente Secreto” e saí mal de lá, física e psicologicamente. Fisicamente, por ficar três horas numa sala muito fria, o que me atacou a sinusite e a rinite; psicologicamente, porque me trouxe à lembrança um tempo passado que não gostaria mais de reviver: 1977, fevereiro, carnaval.

Ditadura militar, perseguição generalizada a quem pensasse diferente, violência institucionalizada, ausência total de liberdade. Apenas em 1979 acabaria a censura e seria permitida a volta de exilados e de perseguidos políticos, começando a longa agonia do último governo militar, que ainda levaria seis longos anos.

Mas o filme não tematiza, explicitamente, a ditadura militar brasileira. É uma obra de arte e, como tal, utiliza imagens e sons, signos e símbolos, para contar a história do personagem Marcelo/Armando, que volta a Recife, para reencontrar o filho deixado com os avós, após a morte da esposa e a perda do emprego de professor na universidade. Não se sabe bem de onde vem, mas, na primeira cena, há um cadáver insepulto no pátio do posto de gasolina, já em putrefação. E esse é o primeiro sinal de que há algo de podre no reino, e não é o da Dinamarca.

Outros personagens aparecem para contar a história: policiais da polícia rodoviária federal, que buscam alguns indícios de erro no motorista ou no veículo, para o incriminar. Não encontrando, pedem uma ‘caixinha’ e acabam aceitando três míseros cigarros de consolo. Em seguida, um carro com foliões se aproxima e se afasta, rapidamente, ao presenciarem os policiais e o cadáver. O personagem é liberado e segue em direção a Recife, passando por foliões mascarados, dentre os quais um com feições diabólicas, com quem terá pesadelos, mais à frente.

Chegando a Recife, encontra o contato que buscava: uma senhora de 77 anos, que fuma há 60, e abriga em seu prédio alguns refugiados: um casal angolano, uma dentista desquitada com a filha, um jovem não aceito por não ser o homem que os pais queriam, um rapaz com o braço quebrado, e outros deserdados da sorte, incluindo a gata que é duas em uma.

Essa senhora é o retrato do humanismo que faltava, a que abriga, consola e alegra, quando todo mundo ao redor só representa o perigo. Faz parte de uma cadeia de solidariedade que ampara os perseguidos, a que se soma a personagem de Maria Fernanda Cândido e outros, que buscam ajudar os exilados da própria pátria e de outras a encontrar novos destinos fora daqui.

Nessa cadeia de solidariedade, encontram-se o sogro e a sogra, que criam o seu filho, enquanto ele foge dos que o perseguem. Encomendada a sua morte, a história caminha para o fim, quando um assassino profissional, não menos perigoso do que os outros que lhe pagam para exercer seu ofício, detona a tragédia final.

Wagner Moura em cena do filme
Wagner Moura em cena do filme "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho . Crédito: Divulgação

O carnaval de Recife se aproxima das cem mortes, conforme noticia o jornal, outro índice usado para contar a história, assim como também é utilizado de mortalha para os cadáveres insepultos. Outros símbolos recorrentes são o tubarão, titulo do filme em cartaz na época, que é encontrado com uma perna masculina no ventre, a mesma perna que se transforma em elemento fantástico na narrativa jornalesca como “a perna cabeluda” que a todos assusta.

Quanto ao “agente secreto” do título é uma referência ao seriado, a que o menino assiste na TV, ao pai, que buscava a sua origem, e a ele mesmo, que, médico, no futuro, terá de entender a sua história entranhada na história do país. Enfim, o filme é caleidoscópico e sua compreensão demanda a interpretação de signos, metáforas e referências. São três tempos narrativos, o protagonista atua em três papéis, e três são os cenários de locação: Recife (o da ação), São Paulo (o do poder econômico) e Brasília (o poder político sugerido pelo retrato do ditador nas repartições públicas). Obra de arte, deverá provocar muitas leituras nos cinéfilos. Atores, diretor e todos os envolvidos estão de parabéns. Que venha o Oscar!

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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