Não sei o que será da memória literária quando, daqui a cem anos, se procurarem os livros digitais ou eletrônicos ora produzidos. Se não existirem mais bibliotecas físicas, a memória da humanidade estará na nuvem? E essa nuvem comportará tudo o que está sendo e será produzido? Onde irão parar as lives e podcasts que inundam os nossos dias atuais? E os vídeos nossos de cada dia, onde estarão? Não sei e nunca saberei, pois não estarei vivo para contar.
O que sei e disso posso falar é do mundo físico e tangível que ainda temos, das livrarias, das bibliotecas e dos arquivos como memória coletiva da humanidade e que ainda posso ver, visitar, tocar e pesquisar. Como as livrarias estão em extinção, bem como as bibliotecas, restaram os sebos, reais e virtuais, onde podemos encontrar os amigos livros, que tanta gente não aprendeu a amar, como os da minha geração.
Faço parte da última geração do papel, talvez, e, hoje, gostaria de comentar o papel dos sebos nos tempos atuais, pois já falei, em outras ocasiões, sobre as bibliotecas e a sua importância como guardiã da memória coletiva e espaço de cidadania.
Antigamente, as livrarias só vendiam livros, e eu sempre passava por lá para saber das novidades. Hoje, as livrarias de shopping vendem tudo, até livros. Não tenho nenhum prazer em entrar nessas livrarias e dar de cara com montes de coisas logo na entrada, sobretudo se for época de início de temporada escolar. Também não consigo achar os livros de que gosto, sozinho, e muito menos saber-lhes o preço. Tudo tem de passar no tal leitor de QR-Code e é difícil encontrar um “colaborador” que o faça.
Aqueles livros que estão à frente não me interessam, nem mesmo que seja “Café com Deus Pai” ou com o Espírito Santo. Por isso, quando tenho saudade dos livros e procuro algum diferente para ler, embora minha biblioteca ainda tenha muitos que não o foram, vou ao sebo.
Aqui em Vila Velha, onde resido, há uns três, mas o que frequento é o “Ponto de Cultura”, ou, como o conhecemos, o “Sebo do Ivan”. Lá, podemos encontrar muitos livros e para todos os gostos, discos, cds, e apreciar quadros artísticos de escritores e artistas capixabas. Além, claro, de manter um papo cultural gostoso com ele, sempre preocupado com a divulgação e a democratização da cultura capixaba.
O fundo musical também é uma atração: sempre a tocar músicas que não se ouvem mais em nenhuma rádio. Passo lá momentos muito agradáveis, revendo livros que já li, que ajudei a fazer ou que não pude comprar à época em que foram lançados e, agora, estão ali, facim, facim…
Dificilmente saio de lá sem encontrar alguma relíquia. Na última vez, trouxe, li e doei para a biblioteca do IHGVV o romance “Atribulações de um Capichaba”, escrito pelo famoso pintor Homero Massena e publicado em 1965, há 60 anos. Trata-se uma obra de valor histórico, mais que literário, autografado por Edy Massena, a esposa dele, a um Dr. Tasso.
A história é muito interessante, sobre um feirante capixaba que acerta na loteria e vai passear no Rio. Lá, vive várias peripécias, é enganado pelos malandros cariocas, vai trabalhar numa fazenda em Minas, sofre mais enganos,volta para o Rio e consegue ganhar dinheiro para voltar ao Espírito Santo, onde enriquece. Gostei, sobretudo, do episódio descrito sobre um feiticeiro em Minas e de como era tratada a questão das crenças religiosas de matriz africana. Merece ser reeditado.
Outro livro que trouxe de lá foi o “Canto Magro”, poemas de Jair Amorim, publicado por nós em 1995, na Ufes, e traz sua produção poética, desde 1931, quando começou a publicar poemas, aos 16 anos. Jair Amorim foi um dos principais compositores da MPB, fazendo dupla com Evaldo Gouveia, em canções imortalizadas nas vozes potentes de Altemar Dutra ou de Cauby Peixoto. O livro está autografado por Yvonne Amorim, sua irmã, e o doei à biblioteca Saul de Navarro da AEL.
O terceiro livro, também autografado pelo autor, é o “Memórias de Cachoeiro”, com entrevistas de cachoeirenses ilustres feitas pelo jornalista Marco Antônio Carvalho, publicado em 2000, quando se preparava para escrever sua alentada biografia sobre Rubem Braga, “O Cigano Fazendeiro do Ar”.
Livros de sebo trazem marcas de leitura, anotações, bilhetes, dedicatórias, marcadores, cartas, cartões-postais e tudo isso faz parte de um universo em extinção, que recriamos quando vamos aos sebos físicos e deles saímos repletos de memórias. Claro, há, também, os sebos virtuais, mas esses não têm o romantismo e a nostalgia que os presenciais trazem.
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