Sexta-feira à noite, véspera de feriadão, ligo a tevê para ver as notícias e o jornal local abre a edição com a foto de uma criança linda, dois anos, e a voz em off do repórter anunciando: “Menina de dois anos é estuprada e morta pelo próprio pai, em Guarapari, com a conivência da mãe”.
Desligo a tevê, pois não quero ver mais esse show de horrores. Antes, se ouvia e via telejornal, para as notícias; agora, eles passaram a ser “boletim de ocorrências policiais”. Os repórteres ficam de plantão, em frente às delegacias, ou aos acidentes de trânsito, e cada um concorre com o outro para ver quem apresenta a notícia mais horrorosa ou o crime mais escabroso. Para mim, chega. Não vejo mais.
Assim como a imprensa não noticia os suicídios, e são muitos, diariamente, há pouco se convencionou de não mostrar mais as imagens de jovens que, seduzidos pelo mundo escuro das redes, cometem assassinatos em série. O último, lido hoje, foi em Belgrado, na Sérvia, quando um adolescente de 14 anos matou 9 pessoas em uma escola de ensino fundamental, dentre as quais oito crianças. Não se divulgou o rosto do assassino nem o das vítimas. E assim deve ser.
Da mesma forma, em crimes de estupro e morte de crianças, não se deveria divulgar a imagem das vítimas e nem dos seus algozes. Precisamos, urgentemente, parar de espetacularizar o mal. O mundo, e as pessoas que vivem nele, é composto de uma face ruim e de outra boa, e o ser humano convive com as duas, simultaneamente.
Por que a mídia escolhe só mostrar o lado ruim, perverso, maléfico das pessoas? Ah, é o que “vende”, respondem alguns. Se for assim, há algo errado no mundo, pois estamos cultivando só o lado mórbido do ser humano para alimentar esses instintos primários de violência e morte.
Desde 1967, lemos em “A sociedade do espetáculo”, do sociólogo Guy Debord, que o capitalismo tem criado uma sociedade em que as relações sociais são mediadas pela imagem e pelo consumo. Para ele, a sociedade moderna é dominada por um “espetáculo”, ou seja, um consumo de imagens e mensagens que são veiculadas pela mídia, com o objetivo de promover o consumo e a conformidade.
Essas imagens e mensagens formam um mundo fictício, que as pessoas tendem a confundir com a realidade, o que leva a uma alienação e a uma perda da consciência crítica. O autor argumenta que a sociedade do espetáculo é opressiva e desumanizante e que é necessária uma revolução para superá-la. De lá para cá, essa espetacularização do mundo só piorou; com o advento das redes sociais, o mundo se imbecilizou (vide as dancinhas do Tik-Tok) e as pessoas perderam a noção do real, pois só têm os olhos seduzidos pelo mundo virtual.
Vivemos tempos estranhos, em que o mal é explorado de todas as formas, o que acaba estimulando a própria disseminação do lado perverso do ser humano. As imagens de mulheres espancadas, mutiladas e mortas por homens sanguinários; corpos de pessoas torturadas, violentadas e assassinadas, até mesmo de crianças, exibidos na imprensa e nas mídias sociais; imagens de jovens adolescentes associados ao tráfico com suas armas bélicas ou de assassinos em série de estudantes; corpos carbonizados e dilacerados em acidentes de trânsito.
Tudo é exibido como troféu e cada canal se acha mais poderoso que outro por exibir mais cenas escabrosas e atrair maior número de espectadores. Pais conscientes já não deixam seus filhos assistirem a esse circo de horrores. Hannah Arendt (1906-1975), filósofa judia alemã, estudou essa questão da banalidade do mal. Segundo ela, ”o maior mal do mundo é o do mal cometido por ninguém”, ou seja, quando as pessoas praticam o mal sem a consciência de o praticar. Arendt ficou como exemplo de pensadora da liberdade, e por ter defendido os direitos individuais contra as sociedades de massa e os crimes contra a pessoa. Urge reler suas obras.
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