Doutora em Epidemiologia (UERJ). Pós-doutora em Epidemiologia (Johns Hopkins University). Professora Titular da Ufes. Aborda nesta coluna a relação entre saúde, ciência e contemporaneidade

Um dia na vida de um pesquisador no país que não estimula a ciência

Na lista dos 10 mil pesquisadores mais produtivos da América Latina, ocupei a 47° posição no Brasil e a 48ª na América Latina na área de Saúde Pública e Epidemiologia. Apoiar o subsídio de pesquisas no país é apoiar a melhoria da vida de todos

Publicado em 14/10/2021 às 02h02
Murais de mosaico na Grande Vitória
Mural de Raphael Samú no campus da Ufes, em Goiabeiras. Crédito: Vitor Jubini

Na semana passada, foi publicada uma lista dos 10 mil pesquisadores mais produtivos da América Latina. Esse dado é parte do ranking realizado pelo sistema Alper-Doger Scientific, que considera a análise do desempenho científico e o valor agregado na produtividade científica.

Fiquei lisonjeada ao perceber o reconhecimento e a importância do meu trabalho, na medida em que eu apareci, nessa lista, como a quinta pesquisadora mais citada da Ufes e do Espírito Santo entre todas as áreas de conhecimento de forma geral e a primeira na minha área.

No cenário nacional, ocupei a 47º posição, e na América Latina, a 48ª na área de Saúde Pública e Epidemiologia. O Brasil tem excelentes sanitaristas e epidemiologistas, com grandes contribuições para a saúde mundial. Então, estar entre os cientistas mais citados é um feito, principalmente porque nosso Estado não tem muita tradição de pesquisa e seu desenvolvimento é relativamente recente.

No meu caso, tenho um índice de citação de 41. Significa que, de 187 artigos publicados, pelo menos 41 foram citados por 41 pesquisadores diferentes, nessa combinação. Atualmente há um total de 6.622 citações, ou seja, esses artigos foram lidos e referenciados por outros pesquisadores mais de seis mil vezes.

Portanto, para fazer ciência e produção de conhecimento, a pesquisa precisa ser publicada e, mais que isso, lida e citada em outras pesquisas, e é assim, que avaliamos o sucesso de um pesquisador sob a ótica que realmente importa: sua contribuição para o benefício e proveito da sociedade.

Mas o artigo científico é a atividade-fim, é a ponta do iceberg. O trabalho inicia na formulação do projeto de pesquisa, na inovação da ideia do que ainda é necessário preencher, da lacuna do conhecimento. Depois, vem a longa batalha para conseguir financiar essa ideia. E cabe ressaltar que muitas pesquisas acabam não saindo do papel por falta de financiamento, mesmo com o potencial de melhorar a vida das pessoas.

Uma vez conquistado o financiamento, quase sempre em uma disputa muito acirrada entre os pesquisadores com igual capacidade, vem a difícil parte de executar o projeto. O que significa cumprir algumas etapas que podem demorar anos, como, por exemplo, ir a campo, entrevistar pessoas, sistematizar os dados, recomendar novas estratégias, novos medicamentos e novas formas de prevenção. Em média, na saúde pública, propor novas intervenções em saúde demora três anos. Depois disso, é que os artigos são publicados. E o iceberg do imenso trabalho aparece para a sociedade.

O pesquisador é um trabalhador, como tantos outros. A pesquisa deve ser encarada a sério, como o ofício que é. O dia começa cedo, com muita leitura de outros artigos. Precisamos saber o que os outros estão produzindo e como está o avanço do conhecimento. A seguir, há horas e horas organizando uma imensa equipe, alunos de iniciação cientifica, mestrado e doutorado.

Checar as tarefas, escrever e avaliar as atividades realizadas. O dia termina após longas horas de estudo, pesquisa e análise de dados. Uma tarefa muitas vezes solitária e que demanda muita atenção e concentração para que não sejam cometidos erros que possam comprometer o trabalho.

Vários projetos de pesquisa podem acontecer ao mesmo tempo e é necessário escrever resultados de pesquisa e enviá-los para publicação em revistas científicas especializadas na área de conhecimento que tem revisão de pares. Isso quer dizer que outros cientistas vão avaliar e validar aqueles resultados encontrados em um longo processo para evitar possíveis erros. Para tornar o processo mais justo, os avaliadores desconhecem quem escreveu o artigo.

A ciência vive de novas descobertas, novas ideias que vão impulsionar o conhecimento. Essas pesquisas necessitam de financiamento para que a sua vida e a minha melhorem, por isso, quando nos deparamos com um corte de mais de 85% do orçamento da pesquisa no Brasil, é um dia de luto na vida dos pesquisadores e das instituições de pesquisa, mas principalmente deve ser um dia de luto para toda a sociedade.

Imaginem que, se o mundo dependesse do Brasil para produzir uma vacina contra a Covid-19, estaríamos todos ainda sem nos vacinar, por um motivo simples: essa vacina não existiria apesar de termos cientistas qualificados para tal empreitada. Mas as vacinas contra a Covid só foram possíveis porque países da Europa, EUA e China investiram muitos recursos financeiros para que seus pesquisadores descobrissem esses imunizantes. Assim também acontece com outras doenças, como o câncer. Só é possível termos melhores medicamentos e mais efetivos, se pesquisas forem financiadas e novas descobertas forem feitas.

Para tomarmos como exemplo a tuberculose: milhões de pessoas morreram antes da descoberta da vacina em 1921, há exatos 100 anos. Depois, com a descoberta da vacina, os casos graves diminuíram significativamente, mas algumas pessoas, principalmente com comorbidades, ainda apresentavam a doença até que, em 1944, o primeiro medicamento para tratar a tuberculose foi descoberto. Assim, hoje continuamos com a vacina para os recém-nascidos e tratamos aqueles que apresentam a doença para minimizar o risco de óbito. E graças à ciência estamos rumo à eliminação da tuberculose no mundo.

O mesmo acontecerá com a Covid-19. Teremos vacina cada vez mais eficazes e, com a descoberta do primeiro antiviral oral na semana passada, teremos também, em breve, medicamento para tratar aqueles que mesmo depois de vacinados possam vir a desenvolver a doença. Todavia, precisamos continuar monitorando, com o apoio da ciência, o adoecimento e o óbito. Nessa sequência, chegaremos ao controle desta pandemia e, em seguida, a sua eliminação.

Por isso, apoiar o subsídio de pesquisas no país é apoiar a melhoria da sua vida e da comunidade tanto em nível local, como global. É urgente transformar o luto pelos cortes de financiamento em luta a favor dos recursos para a ciência no Brasil.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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