Ao humano deveria bastar ser humano, mas desde sempre há o sonho de ser Deus. A finitude é uma espécie de questão mal resolvida. Quando menos se espera, lá vem ela – a questão – com uma nova roupagem, outros trajes cobrindo a mesma obsessão: brincar de Deus.
Parece que não basta saber-se fruto de milagre, o humano, ou melhor, o bilionário humano, com muito tempo livre, quer ser o realizador de milagres.
É a um desses excêntricos endinheirados que respondem os cientistas californianos que trabalharam em silêncio para trazer de volta à vida o “lobo-terrível”, um predador que desapareceu da Terra há mais de dez mil anos. Usaram DNA fossilizado e técnicas de edição genética. Deu certo? Não. Era fake news. O lobo não ressuscitou. Apesar de os filhotes serem lindos e realmente lembrarem os lobos brancos da série Game of Thrones, é um lobo reeditado, mas não ressuscitado. Fico pensando o que Mary Shelley, a genial autora de Frankenstein, teria a dizer sobre isso.
Mas não é sobre lobos ou mamutes. É sobre nós. Sobre essa fome estranha de vencer a morte, costurar corpos ausentes para emendar o tempo. Querer viver só depois.
Não se trata de ecologia, de biodiversidade, de equilíbrio natural. O que se quer ali é vencer o fim, apagar o ponto final da história. Ganhamos o fogo e, com ele, a ilusão do controle. Até da morte.
Tudo vira pó. Nossa carne, os crachás, que escondem nossos corações, os smartphones, que sequestraram nossas vidas e suas senhas ridículas, absolutamente tudo será pó. Somos frágeis criaturas diante da morte. Dói menos quando aceitamos.
Querer a eternidade é, paradoxalmente, um desejo de silenciar o movimento da vida, é a própria pulsão de morte, só que embalada em papel prateado de futuro. Sem dúvida, é um bom disfarce.
Enquanto corremos atrás de fantasmas, ignoramos os vivos. Ignoramos as onças-pintadas encurraladas por cercas. As tartarugas sufocadas por plástico. Os lobos-guará e, quem sabe, estejamos ignorando o bicho-homem. A extinção não está no passado, ela acontece agora, aqui, ao nosso lado. Mas talvez seja mais fácil pensar em ressuscitar do que proteger o que ainda respira.
Reviver o lobo-terrível é só mais uma tentativa de preencher o vazio com espetáculo. Como crianças que repetem o mesmo conto para dominar o medo do escuro.

Mas talvez exista outro caminho. Um que não pretenda apagar a morte, mas acolhê-la. Um que não queira corrigir o tempo, mas escutá-lo. Um caminho mais próximo da arte do que da técnica.
Quem sabe seja isso. Talvez a arte possa o que a ciência não consegue: ressuscitar o tempo, não com genes, mas com gestos. Não com fósseis, mas com presença. Com a memória do que ainda vive e pode morrer amanhã.
Como disse a poeta Matilde Campilho, “a arte serve para salvar o instante. O que me interessa é salvar o instante, não eternizá-lo, apenas salvar o instante do abandono, do vazio, do esquecimento”.
Entregar presença e afeto ao instante faz memória do que viveu. Ilumina o que ainda pulsa. A vida basta.
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