Hoje, peguei a palavra pelo rabo para escrever esta crônica. Palavra é bicho independente, feito gato. Vem quando quer. Do nada, some. Depois volta, toda querendo se enroscar nas nossas pernas até subir à boca. Nada está dado nos segundos que antecedem os dedos no teclado. Exceto, é claro, se terceirizarmos a escrita. Aí o voyeurismo explica e sobre isso nada a declarar. Vida: cada um que viva a sua.
Preta partiu e o pesar que senti encontrou conforto na inteireza do seu legado, construído, conquistado. Tudo o que o mercado apontava nela como símbolo de vergonha foi transmutado em vitória. Suas cicatrizes foram sinais de vida. Ela usou bem este curto espaço de tempo entre o primeiro choro e o último suspiro.
Ninguém gosta de pensar na finitude, mas ela está posta. Não adianta distrair-se com a vida alheia para esconder essa verdade. Justamente porque a vida acaba é que faz mais sentido vivê-la intensamente. O preço de não viver é mais alto que qualquer perrengue da vida.
A reconciliação com o real pode ou não ser dolorosa, depende muito da disposição para aceitar o que vem, seja aplauso ou vaia. Tomara que você se cure de quem nunca reconheceu que te feriu, dizia Preta. Não importa muito o que venha de lá, desde que estejamos no lugar que nos pertence.
Falar da Preta é falar de iluminar caminhos de pertencimento. O que pode ser mais generoso? Libertar-se é querer o outro liberto, ela repetia. E lá ia ela abrir frente, colocar seu bloco na rua. Lá ia a Preta erguer o estandarte da alegria de viver.
A verdade inconveniente é que a alegria, como o amor, é um movimento. Isso nos responsabiliza demais com a nossa própria vida. Sim, Preta, orgulhosamente Gil, construiu sobre o seu nome. Nascer filha de Gilberto Gil é uma dádiva, deixar um legado de luta contra a gordofobia, o racismo, a misoginia, a homofobia e o ódio, é trabalho.
Preta e sua humanidade exposta reverberam neste momento caótico do mundo e abrem alas para seu recado final, feito em silêncio: a amorosidade da sua rede de amigos. Construir amor verdadeiro, este amor amplo que fala por si, é deixar mais um sinal de que a vida boa é a bem vivida.
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