Xingado por dois homens após citar a vereadora executada Marielle Franco (PSOL) durante a missa de domingo na Paróquia da Ressurreição, em Ipanema, na Zona Sul do Rio, o padre Mario de França Miranda, de 81 anos, atribuiu nesta segunda-feira (19) a reação à radicalização da sociedade. E disse acreditar que a solução está no restabelecimento do diálogo. O caso foi revelado pelo colunista do GLOBO Ancelmo Gois.
"O problema é muito complexo. É muito difícil, hoje, emitir uma opinião clara e transparente. O problema é (a falta de) diálogo; a sociedade (precisa) esquecer seus partidos (e dialogar). Não é fácil, porque significa ceder um pouco, escutar o outro", afirmou ele, que é professor emérito de Teologia da PUC-Rio.
De acordo com o padre, a polarização ameaça a democracia. A partir dos extremos, podem surgir regimes totalitários de diferentes correntes ideológicas:
"Esse episódio mostra um pouco a situação que estamos vivendo. As posições estão muito radicalizadas, tanto de um lado quanto de outro. O pessoal não ouve outra opinião. Isso é um perigo para a democracia, porque permite que venha uma ditadura de direita ou de esquerda", disse o Padre.
O pároco explicou ao GLOBO que terminava a homilia no último domingo quando citou a vereadora, entre outras personalidades, como dom Oscar Romero e Martin Luther King. Ao citar a parlamentar, foi hostilizado por dois homens, num público de, aproximadamente, 500 pessoas.
O padre Mario de França minimizou o incidente. Disse que foi algo "muito pequeno" para o universo total de presentes no local. E acrescentou que não seria justo prejudicar a todos por causa de apenas duas pessoas. Por isso, disse, "tocou a missa" em frente.
Ainda de acordo com o religioso, a citação à vereadora Marielle Franco na Paróquia da Ressurreição não teve conotação política. Isso porque a luta por uma sociedade mais justa deve ser um ideal cristão, e não uma missão partidária.
"O que Cristo fez foi lutar por uma sociedade mais justa. Quando temos exemplos de pessoas que lutam por aí, elas estão fazendo o que Deus faria também: lutar por uma sociedade mais humana, com menos desigualdade", declarou ele, que ainda acrescentou: "O que falei estava dentro do Evangelho. Estava falando de alguém que era preocupada com negros, pobres... Se isso não é Evangelho, não sei o que pode ser", concluiu.
Para o padre, a morte não significa necessariamente um "fim", porque pode ser "extremamente fecunda". Ele argumenta que foi isso que aconteceu com Jesus. Na avaliação do religioso, algumas mortes podem impulsionar lutas e ideais.
"Mataram Jesus Cristo precocemente, mas mudou a história da sociedade. Deu frutos enormes".
Mario de França também criticou o crescimento das desigualdades sociais. Na visão dele, é dever cristão buscar um mundo mais igualitário. E isso deve ser buscado globalmente, já que o problema afeta o mundo todo.
"Está no trabalho de Jesus ensinar o perdão, transformando a convivência humana numa convivência fraterna. Como ser feliz se as pessoas passam fome e matam imigrantes para fabricar mais armas? O problema hoje é planetário e todos devem cooperar. Apesar de todas as conquistas da razão e da tecnologia, a desigualdade aumenta", afirmou.
O padre também comenta que o pano de fundo para o aumento da desigualdade está no crescimento econômico a qualquer custo. Ele argumenta que o investimento financeiro em locais menos favorecidos pode ajudar a impulsionar a economia local, gerar renda, empregos e reparar injustiças sociais.
"Se jogar dinheiro em países mais pobres, a economia gira. Quando o governo (brasileiro) fez isso, o país cresceu", disse ele, que lamentou o momento de violência e penúria financeira pelo qual o Rio passa:
"Sou carioca, estou com quase 82 anos e nunca viu uma situação como essa. Estão todos com medo. Limparam o estado. A gente se acostumou a ouvir barulhos de tiros. Há roubos de cargas. E as firmas estão indo embora, o que vai empobrecendo o Rio e diminuindo os empregos", desabafou Mário.
PERGUNTAS E RESPOSTAS
A quem caberia o restabelecimento da capacidade de dialogar?
Seria papel dos políticos, mas a classe está muito desacreditada. Os caciques, me parece, também não querem ceder. É muito complexo.
Então, o que fazer para voltar a dialogar?
Primeiro a gente tem que tomar consciência de que a situação é grave. É o futuro do planeta que está em jogo. Os mais lúcidos estão percebendo isso. Todo mundo quer produzir o máximo, mercado está dando as regras do jogo. Mas não vemos nenhuma instância que possa resolver o problema.
As instâncias às quais o senhor se refere são Legislativo, Executivo e Judiciário?
A ONU (Organização das Nações Unidas) tem autoridade moral, mas ao mesmo tempo não tem autoridade. Depende dos países que estão nela. Não temos, hoje, uma entidade que pense no planeta e tenha autonomia para pensar no planeta. E é necessário. Criou-se a ONU para que houvesse o diálogo, mas quem dita o diálogo são os países com mais dinheiro.
Assim como cresce a radicalização, também aumentam as "fake news". No caso da Marielle não foi diferente. Qual o perigo desse crescimento?
O pessoal fala sem ter dados. É de uma irresponsabilidade tremenda. (No caso da Marielle) ainda é uma pessoa que morreu; que não pode nem se defender. Não sei se já passamos por um momento assim (tão conturbado). Pode ser que a gente, chegando lá no fundo do poço, reaja. O próximo passo é não poder sair de casa.
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