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Ursal: brincadeira que virou combustível para teoria da conspiração

Ursal: brincadeira que virou combustível para teoria da conspiração

Termo que viralizou na internet foi criado por uma socióloga crítica de movimentos à esquerda para fazer ironia. As informações foram checadas pelo projeto Comprova

Publicado em 17 de agosto de 2018 às 21:00

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Logo após o candidato à Presidência da República Cabo Daciolo (Patriota), no debate realizado pela Band, pedir para que o também candidato Ciro Gomes (PDT) falasse sobre o "plano Ursal", o termo ganhou as redes sociais. Foi encarado por alguns como algo divertido, ilustrado com a imagem de um simpático ursinho vermelho, e por outros como uma séria denúncia em rede nacional de uma trama para eliminar as fronteiras da América Latina e implantar o socialismo em todos os países da região.

O projeto Comprova verificou as informações sobre o tema e concluiu que o plano de transformar a América Latina na União das Repúblicas Socialistas da América Latina, a Ursal, não existe. Existem, sim, iniciativas para a integração da região, sobretudo na perspectiva comercial e econômica, mas nenhuma delas determina que os países abram mão de suas soberanias ou troquem regimes políticos.

Fizeram e concordaram com o trabalho de checagem profissionais de Gazeta Online, SBT, Gazeta do Povo, Poder360, Correio do Povo, UOL, Jornal do Commercio e Estadão. O Comprova é uma coalizão que reúne 24 veículos de imprensa para combater a desinformação na eleição presidencial.

 

Termo Ursal foi criado como brincadeira e agora alimenta teorias conspiratórias. (Reprodução)

O termo Ursal foi inventado em 9 de dezembro de 2001, no artigo "Os Companheiros", da socióloga Maria Lucia Victor Barbosa, publicado no site do filósofo Olavo de Carvalho. No texto, ela criticava encontro do Foro de São Paulo realizado naquele mesmo ano em Havana. Na ocasião, Lula (PT), então pré-candidato à Presidência, havia feito críticas à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) proposta pelos Estados Unidos para o continente.

No artigo, ela destacou que, para o líder petista, a Alca seria uma "anexação" imposta pelos Estados Unidos e o "fim da integração latino-americana". Em seguida, ela rebateu: "Mas qual seria, me pergunto, essa tal integração no modelo Castro-Chávez-Lula? Quem sabe, a criação da União das Republiquetas Socialistas da América Latina (Ursal)?", escreveu, na época.

Em entrevista ao Comprova, Maria Lúcia, professora aposentada pela Universidade Estadual de Londrina e autora de livros como "O Voto da Pobreza e a Pobreza do Voto — a Ética da Malandragem (1988)", confirmou que o termo foi cunhado para ironia. "A Ursal foi uma brincadeira que virou uma teoria conspiratória", disse a socióloga. Ouça a entrevista.

Termo Ursal virou alvo de muitos memes na internet após o debate com os candidatos à presidência da República. (Reprodução)

Ela usou como referência a URSS, sigla de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Este, sim, foi um Estado socialista que existiu de 1922 a 1991. Maria Lúcia contou, também em entrevista ao Comprova, ter recebido e-mails, após o artigo publicado, que mencionavam a Ursal. Ela destaca que sempre dizia aos remetentes que aquilo era uma invenção dela e que a "União" não existia.

Cinco anos depois, em 1º de maio de 2006, o termo foi novamente usado. Desta vez pelo próprio Olavo de Carvalho, em artigo dele publicado no Diário do Comércio e republicado por ele em seu site. No texto, ele falava sobre não desprezar teorias conspiratórias e tratava a Ursal como plano do Foro de São Paulo.

Nos últimos dias, com o destaque dado ao termo por conta do debate presidencial, Olavo voltou a citá-lo. No dia 13 de agosto, escreveu no Facebook que o "termo é genérico" e que a denominação não é oficial. Mas opinou que "a existência do plano comunista de integração continental é o fato mais abundantemente documentado das últimas décadas".

Uma referência constante usada por aqueles que veem a Ursal como ameaça é o site "Dossiê Ursal", criado em 2015. A página apresenta uma série de links com matérias, vídeos e opiniões que reunidos, segundo o autor do site, provam que a Ursal é a "desgraça que está por vir".

Ursal é vista por críticos de movimentos de esquerda como uma grande ameaça . (Reprodução)

O site cita o termo seis vezes. Em nenhuma delas, apresenta documentos, discursos ou diálogos de líderes de esquerda tramando a criação da União das Repúblicas Socialistas da América Latina. De acordo com o Whois, a página foi criada em 9 de abril de 2015, embora registrada inicialmente em 2009. O provedor usado é o Dreamhost, que permite a ocultação do real proprietário do site em consultas públicas.

Um homem que se apresenta como especialista em processamento de dados afirmou em vídeo publicado em 20 de junho deste no Facebook ano ser o criador do site. O Comprova telefonou para ele e pediu, por mensagem, informações sobre o site, sobre onde encontrou a primeira menção à Ursal e perguntou se ele havia lido entrevistas da socióloga Maria Lúcia. Ele disse que daria entrevista, mas, posteriormente, não atendeu às ligações ou as demais tentativas de contato.

Ele é um fã de teorias conspiratórias. Escreveu um livro que se propõe a mostrar que a história da chegada do homem à Lua é a "fraude do século".

INTEGRAÇÃO

Embora o termo Ursal tenha sido criado como brincadeira, como ironia, é fato que líderes políticos da América Latina têm formalizado o interesse em integrar os países da região pelo menos desde a década de 1980. Contudo, nas discussões que ganharam as redes sociais há certa confusão sobre o conceito de "integração".

Alguns críticos de partidos de esquerda costumam interpretá-la como estratégia de transformação da América Latina, com remoção de fronteiras dos países, em uma espécie de nação única governada sob um regime socialista.

Até a Constituição Federal do Brasil, de 1988, entra na interpretação. A Carta Magna destaca no parágrafo único do artigo 4º que o país "buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações". A leitura não pode ser feita, porém, de maneira a desconsiderar o artigo 3º, que exige o respeito a valores como independência dos povos, a não-intervenção e a autodeterminação dos povos.

Todas as iniciativas de integração que saíram do papel, inclusive com a participação de líderes políticos considerados de esquerda, não passam nem perto de uma grande transição ao socialismo. Nesses casos, a integração tem se restringido a parcerias econômicas, mercadológicas, para infraestrutura, para circulação de pessoas e mesmo para reafirmação de valores democráticos.

O QUE É FORO DE SÃO PAULO?

O mais lembrado exercício de integração é o Foro de São Paulo, evento que reúne líderes, partidos e organizações de esquerda da América Latina. Não é um prédio ou uma instituição. Foi constituído em julho de 1990, sob liderança de Lula e do Partido dos Trabalhadores, do Brasil. Ao todo, 48 agremiações se reuniram no hotel Danúbio, em São Paulo, naquele ano. Teve como objetivo central debater a conjuntura mundial no período pós-queda do Muro de Berlim, em 1989.

Esse primeiro encontro ocorreu sob o nome de "Encontro de Partidos e Organizações de Esquerda da América Latina e Caribe". Apenas na reunião seguinte, realizada na Cidade do México em 1991, o nome Foro de São Paulo ficou instituído. Desde então se mantém, embora as conferências não ocorram sempre na capital paulista.

A reunião passou outras três vezes pelo Brasil. Ocorreu em Porto Alegre, em 1997, e em São Paulo, em 2007 e 2013.

As declarações finais estão publicadas no site do Foro. Apesar de os textos deixarem clara a defesa de ideais "de esquerda, socialistas, democráticos, populares e anti-imperialistas", nenhum deles faz referência à Ursal.

Ao todo, 113 organizações de 26 nacionalidades aparecem no site oficial do Foro como membros. Do Brasil são sete partidos políticos: PDT, PCdoB, PCB, PPL, PPS, PSB e PT.

O Foro de São Paulo, no entanto, não é uma grande inovação. Ideias para criar um ambiente de intercâmbio na América Latina existem desde o início do século XIX, com o venezuelano Simón Bolívar, líder em guerras de independência contra o Império Espanhol.

Livros do escritor e político argentino Manuel Baldomero Ugarte ("El Porvenir de La America Latina", de 1910, e "La Patria Grande", de 1922) de expõem interesses na união dos países em federação, inclusive baseando-se em ideias de Bolívar.

MERCOSUL

Outras iniciativas envolveram governos e foram muito mais efetivas, do ponto de vista prático. Entre elas, o Mercado Comum do Sul (Mercosul), o Protocolo de Ushuaia e a União de Nações Sul-Americanas (Unasul). A integração buscada foi sempre do ponto de vista comercial, econômico e de desenvolvimento. E, até então, cada país latino-americano segue sendo ele mesmo, com os próprios regimes e as próprias características.

Fundado em 1991, o Mercosul é o primeiro. Começou com Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Em 2012, houve a adesão da Venezuela, que segue suspensa desde 2016 por descumprimento de protocolos e da cláusula democrática do bloco.

De acordo com a definição oficial do Mercosul, ele nasceu para "propiciar um espaço comum que gerasse oportunidades comerciais e de investimentos mediante a integração competitiva das economias nacionais ao mercado internacional".

Segundo a definição do governo brasileiro, o Mercosul "estabeleceu um modelo de integração profunda, com os objetivos centrais de conformação de um mercado comum - com livre circulação interna de bens, serviços e fatores produtivos - o estabelecimento de uma Tarifa Externa Comum (TEC) no comércio com terceiros países e a adoção de uma política comercial comum".

USHUAIA E UNASUL

Em 24 de julho de 1998, os membros do Mercosul reafirmaram compromissos democráticos por meio do Protocolo de Ushuaia. O primeiro artigo do documento assegurava que "a plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados Partes do presente Protocolo".

Dez anos depois, em 2008, houve a consolidação de outro esforço de integração, com a criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), inspirada no modelo da União Europeia. Entre os objetivos dela, o "fortalecimento do diálogo político dos Estados membros", "desenvolvimento social para erradicação da pobreza e do analfabetismo".

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A Unasul tem 12 membros: Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela. Mas, em abril deste ano, os governos do Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru suspenderam suas atividades no bloco por tempo indeterminado.

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