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O X da Questão: as saídas para a pior crise moral da história

O X da Questão: as saídas para a pior crise moral da história

Desde 2014, com o aparecimento da Lava Jato, os desvios de dinheiro público se tornaram protagonistas da revolta de boa parte da população com a classe política

Publicado em 7 de outubro de 2018 às 12:11

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Claudio Ferraz é graduado em Economia pela Universidade da Costa Rica. Juliana Sakai É diretora de Operações da Transparência Brasil. (Divulgação)

É a corrupção, principalmente nas manifestações de rua, que provoca as reações mais raivosas dos eleitores. E não deixa de ser compreensível que haja tanta indignação, principalmente na era da Lava Jato, o maior esforço institucional de combate às relações escusas entre o poder político e o poder econômico da história do país. Mas, diante de uma nova eleição presidencial, os desafios a serem enfrentados se renovam e, assim, tornam-se ainda mais evidentes e preocupantes. Na última edição desta seção, que durante nove semanas abordou os temas mais relevantes da agenda eleitoral nacional, os convidados tratam desse tema que tira tanto o sono da sociedade. São eles o economista Claudio Ferraz e a diretora de operações da Transparência Brasil, ONG dedicada ao combate à corrupção, Juliana Sakai. Para ambos, é urgente a implementação de mecanismos de prevenção, vedando as brechas que permitem a institucionalização da corrupção no Estado brasileiro. Reduzi-la é possível, há exemplos de países que conseguiram esse feito.

Prevenir a corrupção é tão importante quanto combatê-la. Máquinas estatais mais enxutas conseguem ter mais imunidade contra ela? Qual o peso da burocracia na sua disseminação?

CLAUDIO FERRAZ: Sim, quanto mais enxuta for a máquina estatal mais fácil será prevenir a corrupção já que haverá menos gente para fiscalizar e será mais fácil descobrir irregularidades quando se gasta menos recursos, há menos contratos a serem executados, etc. Mas não é só tamanho do Estado que explica a corrupção. Há municípios no Brasil com o mesmo tamanho e número de funcionários públicos, alguns com muita corrupção e outros com pouca. Mais do que o tamanho da máquina burocrática, o que importa é o tipo de pessoa que trabalha no governo, as normas sociais existentes, e os incentivos que existem.

JULIANA SAKAI: O que vemos na execução de obras é que na verdade falta burocracia e controle que possam evitar fraudes e obras mal-executadas. Nos Estados e municípios, um fiscal fica responsável por 20 obras, que às vezes são distantes entre si, de forma que se torna inviável acompanhar rigorosamente a sua execução. No plano federal, a União não consegue fiscalizar a implementação dos recursos repassados aos mais de 5 mil municípios. O problema no controle e combate à corrupção é que faltam recursos, inclusive humanos.

Como mais transparência e mais rigor em licitações e contratações públicas podem reduzir a corrupção no país?

CLAUDIO FERRAZ: Transparência em contratações públicas é fundamental por dois motivos. Primeiro para saber quem ganha os contratos com o governo. É fundamental poder acompanhar se são sempre as mesmas empresas, se há concorrência e se as empresas ganhadoras têm vínculos com políticos ou funcionários públicos do governo. Hoje em dia é possível fazer esse monitoramento com frequência já que há muita informação existente nos bancos de dados dos governos, quando esses dados são públicos. Segundo, é importante acompanhar não só quem ganha os contratos, mas se os bens e serviços são entregues, se as obras são acabadas com a qualidade que deveriam ser, etc. Isto é mais difícil, mas um portal que liste essas coisas permitiria que a sociedade civil e os possíveis concorrentes em licitações fizessem esse acompanhamento.

JULIANA SAKAI: A transparência é condição básica para controlar a gestão pública. No caso de licitações e contratações, que são foco frequente de fraudes, é possível identificar possíveis direcionamentos de licitações a partir do edital publicado, ou então descobrir conluios ou empresas laranjas a partir do acesso ao quadro societário.

A Lava Jato combateu o maior escândalo de desvio de recursos públicos do país, envolvendo o poder político e o econômico. Como deve ser essa relação daqui para frente? Qual é o legado da Lava Jato? Como fica a operação no próximo governo?

CLAUDIO FERRAZ: A Lava Jato passa por um momento delicado já que, por um lado, continua com um grande apoio da população, conforme mostram algumas pesquisas, mas por outro lado existe uma percepção de impunidade, principalmente em relação aos políticos envolvidos, poucos estão presos e muitos continuam exercendo seu mandato. Há também uma percepção por parte de partidos políticos mais afetados que o Ministério Público exerceu grande arbitrariedades e condenações sem provas. Acho que o que acontecerá durante o mandato do próximo presidente eleito será crucial para o futuro do combate à corrupção no país. O legado já é enorme, com diretores de grandes construtoras presos, algo que seria inimaginável no Brasil faz alguns anos, e políticos como Eduardo Cunha e Sergio Cabral também presos. Mas a punição da corrupção via sistema eleitoral, algo que a aconteceu na Itália depois da operação Mãos Limpas, não parece que acontecerá nesta eleição legislativa. Dessa forma continuaremos com um Congresso povoado por políticos com acusações de corrupção, o que gera uma sensação de impunidade para a população.

JULIANA SAKAI: A Lava Jato tem um papel fundamental no combate à corrupção, punindo grandes políticos e empresários pela primeira vez na história. É importante que as investigações e as punições continuem, no entanto, precisamos pensar para além da punição, o que deve ser feito no tocante à prevenção. A corrupção não pode ser abordada do ponto de vista moral, focando apenas nos atores que a praticaram, mas também do ponto de vista institucional para que diminuam seus incentivos. Independentemente de quem for o próximo presidente, ele terá de negociar com o Congresso, e historicamente sabemos que a aprovação de reformas envolve compra de votos. A resposta a isso não pode ser apenas deixar a polícia na saída do Congresso.

O combate à corrupção não pode se resumir à Lava Jato. O que mais precisa ser feito?

CLAUDIO FERRAZ: Regras de campanhas devem ser modificadas. Foi proibida a doação de empresas, mas pessoas dessas empresas com interesses continuam doando como pessoa física. No Brasil, há um limite de doações que é proporcional à renda. Isso deveria ser modificado com um limite único que independa de renda das pessoas, um máximo que pode ser doado por indivíduo. Os partidos políticos devem se tornar mais transparentes, tanto na escolha de seus quadros como no uso de recursos públicos. Funcionários públicos pegos em atos de corrupção, sejam eles fiscais da receita, policiais ou juízes, devem perder seu emprego e não serem aposentados ganhando salários. O castigo pela corrupção precisa ser mais drástico. O foro privilegiado dos políticos precisa acabar e já estamos caminhando nessa direção. Mas mesmo crimes de corrupção durante um mandato não podem ficar estacionados no STF, o que gera impunidade. O Judiciário precisa ter capacidade de julgar crimes de corrupção com mais celeridade. Nos municípios há prefeitos que passam um mandato inteiro no poder até serem afastados no final do mandato. Isso não deveria acontecer.

JULIANA SAKAI: Listamos 16 medidas que consideramos importantes no combate à corrupção, divididos em quatro eixos: prevenção, controle interno, controle externo e controle social.

A máxima “todo político é ladrão” atrapalha o avanço do Brasil na área? Se sim, de que maneira?

CLAUDIO FERRAZ: Sim, está atrapalhando muito nesta eleição. Diversos trabalhos acadêmicos, inclusive o meu com o professor Frederico Finan da Universidade de California-Berkeley, mostram que quando os eleitores têm informação sólida e crível sobre corrupção, eles punem os políticos corruptos nas urnas. O problema é que esse tipo de comportamento do eleitor é afetado por alguns fatores como recursos, compras de votos e ideologia. Além disso, quando a sociedade está muito polarizada e outros temas dominam o debate, a corrupção fica em segundo lugar. No Brasil, crime, violência e costumes tradicionais têm dominado o debate, e propostas concretas de combate à corrupção ficam para um segundo plano. Num mundo onde todo mundo é corrupto, os eleitores votam utilizando outro critério. E a punição nas urnas fica muito difícil. Esse problema é magnificado pelo crescimento das mídias sociais e fake news, e para muito eleitores é difícil distinguir o que é verdade do que não é.

JULIANA SAKAI: A confiança na classe política nunca foi tão baixa. Com isso ficamos com um vácuo de poder que pode ser assumido rapidamente por personagens que confrontem essa figura do político tradicional, mas que não necessariamente sejam menos corruptos ou tenham melhores propostas ao eleitor.

O Congresso desfigurou o pacote “Dez Medidas Contra a Corrupção”, que atualmente está engavetado. As propostas originais teriam sido eficientes nesse combate? Quais os pontos que devem ser prioridade para o país?

CLAUDIO FERRAZ: Sim, há diversas propostas que estão nas 10 medidas e podem ser muito importantes para o país. Acredito que o foco deve ser primeiro aumentar a eficiência do Judiciário e a celeridade no julgamento de casos de corrupção em prazos razoáveis. O aumento de punição por grandes valores desviados também é importante através de um escalamento da pena. A tipificação de enriquecimento ilícito por funcionários públicos, assim como a adequada punição, é importante assim como a punição aos partidos políticos pelo uso de caixa 2. Todos esses aspectos aumentam a punição pelo crime, mas gostaria de enfatizar uma das propostas que está relacionada com campanhas informativas para a população para estabelecer uma cultura de intolerância à corrupção. Conforme apontam o economist Ray Fisman e a cientista política Miriam Golden em seu livro intitulado “Corruption: what everyone needs to know” (“Corrupção, o que todo mundo precisa saber”), a corrupção é o resultado de um sistema em equilíbrio onde todo mundo acha que não há grandes problemas em desviar recursos. Mas nesse sistema ninguém quer ser o único a se comportar de forma adequada e ser passado para trás. Precisamos mudar as crenças que as pessoas têm sobre o sistema, que não é ok desviar recursos. Grandes campanhas e exemplos podem ser às vezes tão importantes quanto punições extremas.

JULIANA SAKAI: As dez medidas tinham um viés punitivo, que é importante, mas não basta. Dentre elas, destacamos a importância da proteção ao denunciante de boa-fé (whistleblower) e o fim da dupla notificação para ações de improbidade administrativa.

Há algum país, nas proporções do Brasil, que possa servir de exemplo no combate à corrupção?

CLAUDIO FERRAZ: Os EUA eram extremamente corruptos do século XIX até os anos 1930 e 1940. Há um livro interessante, dos economistas Ed Glaeser e Claudia Goldin, que mostra grandes casos de corrupção em diversos setores dos EUA como obras públicas, contratos para limpeza de ruas e construções, etc. Como eles saíram disso? Uma grande transformação com a melhoria do funcionamento da democracia, o papel fundamental de uma mídia independente, um judiciário independente e eficiente, a transformação da população cada vez mais educada e líderes dispostos a empurrar uma agenda de modernização contra a corrupção. Nenhum país conseguiu vencer a corrupção sem esses líderes que desafiam a elite incumbente através de uma plataforma anticorrupção. Porém novos líderes não podem ser populistas e oportunistas. Precisam ter propostas concretas e estar alinhados a princípios democráticos. Melhorar a educação da população e manter uma mídia livre e ativa é fundamental para essa transformação. De nada serve transparência se não há uma mídia livre e ativa para analisar dados e fazer jornalismo e uma população escolarizada para consumir a informação e responsabilizar políticos por desvios de conduta e falta de serviços públicos.

JULIANA SAKAI: Os EUA têm um sistema judiciário bastante eficiente. Mas é uma faca de dois gumes: condenar rápido também implica aumentar erros nas condenações.

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