Publicado em 22 de abril de 2022 às 16:14
Ao usar a Libras (Língua Brasileira de Sinais) para apresentar sua tese de doutorado, em janeiro deste ano, a professora universitária Michelle Murta, 40, contou com três intérpretes para traduzir sua fala a uma plateia virtual de mais de cem pessoas entre ouvintes que não dominavam a língua gestual e pessoas com deficiência auditiva, a maioria.>
Ela foi aprovada com louvor e, com isso, tornou-se a primeira pessoa surda a conseguir o título de doutora na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).>
"Parece que estou num filme quando lembro a trajetória de vida que tive, escolar e pessoal. Penso como consegui chegar até aqui", afirma a servidora pública em entrevista por meio de aplicativo de mensagens. "O significado, para a minha vida, é gratidão.">
Mais um motivo para ela celebrar é que no dia 24 de abril, há exatos 20 anos, a Língua Brasileira de Sinais foi reconhecida como um meio legal de comunicação e expressão no país e, neste sábado (23), o Brasil celebra o Dia Nacional da Educação de Surdos.>
>
"É a minha língua", diz Michelle. Para ela, entretanto, a Libras deveria ser considerada a segunda língua oficial do país na prática, pois, oficialmente, desde 2002 a língua é reconhecida por lei. "É por isso que lutamos.">
Mas a professora afirma que a inclusão efetiva e ampla dos surdos ainda é um sonho distante. "Vivemos mais de 100 anos sob o domínio do oralismo [uso da língua falada]. É um longo caminho a percorrer ainda", diz.>
Michelle conta que estudou em escola convencional sem um intérprete ou assistência especializada. Ela diz que demorou a compreender que não conseguia distinguir palavras como "bala" e "mala".>
Por essa falta de suporte na escola, ela afirma que foi reprovada cinco vezes no ensino fundamental. "Esses dias, eu conversei com uma professora que me deu aula e ela falou que nunca percebeu que eu era surda. Só fui ter atendimento em Libras na faculdade.">
A mineira, nascida em Belo Horizonte, saiu da capital ainda criança para morar em Salinas, no interior do estado. Lá, cresceu com a família materna, composta por 80% de pessoas com questões auditivas.>
"Tenho boa oralização devido à convivência com eles. Mas não sabia, quando bem jovem, que eu era igual a eles." Ela deixou a casa da mãe aos 14 anos para realizar o "sonho de ser professora".>
Michelle concluiu os estudos na EJA (Educação de Jovens e Adultos), aos 23 anos, quando já morava em Belo Horizonte. Posteriormente, passou no vestibular de Letras/Libras da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).>
Depois, ela quebrou outra barreira na carreira acadêmica quando se tornou a primeira professora surda da UFMG, em 2016, aprovada em concurso público. Até então, ela já era funcionária pública, desde 2015, quando ministrava aulas na Federal de Juiz de Fora.>
"Tomei posse como professora efetiva na UFMG. Sabe aquele sonho de criança? O meu foi realizado. Eu sempre desejei estudar ali e, quem sabe, trabalhar. E veja que realizei os dois. Ai que maravilha tudo isso.">
Orientada pelo professor Guilherme Lourenço de Souza em sua tese de doutorado, Michelle apresentou os mapeamentos da estrutura interna dos verbos na língua de sinais.>
A professora de letras/libras conta que sua equipe na UFMG é composta por cinco professores. "Normalmente converso mais com eles em Libras, mas quando encontro uma pessoa leiga, tento fazer leitura labial ou até mesmo utilizar a escrita. O importante é se comunicar.">
O curso recebe tanto alunos surdos quanto ouvintes e Michelle ministra aula para ambos os públicos. "Todos têm conhecimento de Libras, mas já demos aula para turmas com 100% de ouvintes agregando os alunos de outros cursos.">
Fora das salas de aula, Michelle se dedica ao Projeto Mãos Literárias, iniciado em 2019, e hospedado no site da UFMG. Nele, há narrativas de surdos voluntários com histórias, piadas, poemas e lendas, todos em Libras.>
A professora Michelle Murta defende a educação bilíngue com a presença de profissionais capacitados em sala de aula para ampliar a inclusão. Nela, o surdo aprende Libras como primeira língua e o português escrito como segunda.>
"A inclusão ainda é uma verdadeira segregação. A realidade é que muitos surdos estão isolados na sala de aula [convencional]. Eles jamais vão aprender o português se [os educadores] continuarem utilizando a mesma metodologia que se ensina ao ouvinte.">
Outro problema apontado pela doutora é, segundo suas palavras, achar que o intérprete é professor do aluno surdo.>
"De fato ele é um intermediador, mas, infelizmente, muitos professores jogam a responsabilidade do aluno surdo para esse profissional, que acaba tendo dois trabalhos.">
Para a professora, outra possibilidade de ampliar a inclusão é se a Libras se tornasse parte do currículo escolar como disciplina no ensino fundamental, independentemente de haver ou não surdos em sala de aula.>
"É como estudar inglês ou espanhol, que são igualmente importantes. É mais uma língua, e a Libras também tem importância.">
Uma das questões que ela cita na falta da inclusão está relacionada à difusão da língua dos sinais em locais públicos. "Se mais pessoas falassem Libras no mercado, na padaria, no laboratório para fazer um exame, essa exclusão seria reduzida consideravelmente.">
A própria professora dá um exemplo que viveu para mostrar como a presença de surdos é importante em todas as instituições.>
"Minha presença veio para somar. Professores precisaram aprender a se comunicar comigo e a direção precisou solicitar intérpretes para as reuniões.">
Ela explica que tem colegas ouvintes que sabem o básico como cumprimentos, e alunos ouvintes que são fluentes em Libras. "É uma mistura linguística maravilhosa e em breve teremos mais pessoas fluentes.">
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta