Publicado em 9 de maio de 2022 às 10:25
Em quase três anos e meio, o governo Jair Bolsonaro (PL) intensificou ação iniciada pelo antecessor Michel Temer (MDB) e transformou radicalmente o programa de reforma agrária brasileiro. O modelo de distribuição de terras a camponeses pobres deu lugar a outro em que as verbas são minguantes, as desapropriações e assentamentos quase não existem e o foco se resume a uma maratona de entrega de títulos de propriedade a antigos beneficiários.>
O orçamento para aquisição de terras desabou de R$ 930 milhões em 2011 para R$ 2,4 milhões neste ano, o mesmo ocorre com a verba discricionária total do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que caiu de R$ 1,9 bilhão em 2011 para R$ 500 milhões em 2020.>
A incorporação de terras ao Programa Nacional de Reforma Agrária, que nos governos Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) - 1995 a 2010 - somou quase 70 milhões de hectares, praticamente desapareceu, assim como o número de novas famílias assentadas.>
Já a entrega de títulos de propriedade provisórios ou definitivos observou um salto sob Temer, logo após a edição da lei 13.465/2017, que flexibilizou o processo de regularização fundiária, e virou uma febre sob Bolsonaro, que em três anos e três meses de governo entregou 337 mil títulos, um recorde.>
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Há várias nuances por trás desses números, mas é possível definir contornos bastante claros. Em primeiro lugar, Bolsonaro colocou em prática, desde a posse, uma política agrária comandada por ruralistas e radicalmente oposta a movimentos sociais de luta pela terra, em especial o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).>
Ele transferiu o Incra da Casa Civil para o Ministério da Agricultura, pasta que entregou a Tereza Cristina, uma das líderes da bancada ruralista. Para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários nomeou um inimigo histórico dos movimentos sociais do campo, o ruralista Nabhan Garcia.>
Nos primeiros dias de gestão, o Incra paralisou todos os cerca de 250 processos de aquisição e desapropriação de terras para a reforma agrária. Incra, governo e ruralistas reconhecem a paralisia, mas afirmam, em linhas gerais, que a reforma agrária não se resume à desapropriação e distribuição de terras, e que em um cenário de orçamento bastante limitado é preciso priorizar a consolidação dos atuais assentamentos, tendo como foco a entrega de títulos.>
Movimentos rurais e partidos de esquerda ingressaram no fim de 2020 no STF (Supremo Tribunal Federal) com uma ação para obrigar o governo a retomar o programa, mas em 2021 ela foi rejeitada. Houve recurso e o caso está nas mãos de André Mendonça.>
A titulação das propriedades rurais da reforma agrária insere-se no objetivo político de esvaziar a influência do MST sobre os assentados, além de buscar abrir uma frente eleitoral em um terreno tradicionalmente controlado pelos partidos de esquerda. O governo afirma que esses certificados representam a "alforria" dos assentados em relação ao MST e a segurança jurídica para que as famílias tenham acesso a crédito.>
Só em 2022, Bolsonaro já participou de sete eventos de entrega de documentos de propriedade, ocasiões em que o clima se assemelha ao de palanque eleitoral, com beneficiados sendo levados ao palco para receber os papéis das mãos do presidente.>
A Constituição determina que os beneficiários da reforma agrária devem receber documentos de propriedade inegociáveis por dez anos.>
Há três tipos de título, que são concedidos após um trâmite burocrático que leva em conta a evolução da consolidação do assentamento e da produção dos assentados. O primeiro é provisório e chama-se CCU (contrato de concessão de uso), que permite o uso da terra, além do acesso aos benefícios do programa de reforma agrária.>
Os outros dois são definitivos. A CDRU (concessão de direito real de uso), que pode ser concedida de forma coletiva ou individual, mas mantém o Estado como o proprietário da terra, e o TD (título de domínio), individual e em que a propriedade é transferida para o assentado. Esse último, cumpridas condicionantes, entre elas o prazo de 10 anos desde a obtenção do título provisório, pode ser negociado livremente.>
Movimentos sociais, partidos de esquerda e especialistas são contra a política atual. Argumentam, entre outros pontos, que feita sem planejamento irá precarizar assentamentos e levar parte das terras a voltar às mãos de latifundiários e do agronegócio.>
"Em termos conceituais, acho correto que se faça isso [a titulação]. Mas o Diabo mora nos detalhes", diz o ex-ministro Raul Jungmann, chefe da pasta de Política Fundiária sob FHC, afirmando que é preciso saber se os produtores já são autossuficientes e se há infraestrutura completa, entre outros pontos.>
"Pode ser uma alforria para o inferno, a depender do estágio de instalação. Há uma minoria de assentados em condições adequadas, jamais algo em torno de 340 mil famílias, tenho certeza de que não.">
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público lançou no ano passado um guia em que alerta para o risco da distribuição dos títulos de domínio. "Deve-se reconhecer que, no caso do TD, há um risco maior de mercantilização da terra e da venda de lotes, incrementando a especulação em torno do imóvel. Por essa razão, recomenda-se ampla discussão a respeito desse título.">
De acordo com o sociólogo e professor da UnB (Universidade de Brasília) Sérgio Sauer, estudioso de temas ligados aos movimentos sociais agrários, o Incra se tornou um cartório e a entrega de títulos, uma fachada para angariar votos no campo. "Os cortes de recursos públicos para políticas fundiárias e ambientais são escandalosos. O Incra não tem recurso para reconhecer um território quilombola", afirma Sauer.>
O MST defende a emissão das CDRU de forma coletiva, sob o argumento de que isso fortalece o movimento de luta pelo campo e os assentamentos, permitindo a pequenos agricultores se unirem em prol de uma produção sustentável. "O que Bolsonaro faz é uma propaganda enganosa, aproveitando as desapropriações feitas nos governos FHC, Lula e Dilma", afirma Alexandre Conceição, da coordenação nacional do MST, segundo quem há mais de 100 mil famílias em "lona preta" pelo país, aguardando desapropriação de terras e assentamento.>
Ele cita como exemplo de eficiência da ação coletiva dos assentados a produção de arroz no Rio Grande do Sul. "A produção é toda coletiva e a produção do arroz orgânico é de mais de 20 mil toneladas ao ano. Se fosse individualizada, um produziria arroz, outro, banana, outro, batata, e isso não daria volume e escala para o mercado nacional.">
A bancada ruralista na Câmara defende a política de Bolsonaro. "Essa regularização é para passar o título para quem já está há tantos anos, é a coisa mais justa do mundo", diz Celso Maldaner (MDB-SC), que coordena a comissão de agricultura familiar da Frente Parlamentar da Agropecuária.>
O presidente da frente, Sergio Souza (MDB-PR), reforça, dizendo que a distribuição de títulos é um direito das famílias. Sobre a paralisia na desapropriação e atendimento aos sem-terra, diz que o governo tem que priorizar os já assentados, dando "um título em definitivo e a condição para ele de fato utilizar a terra".>
O Incra foi procurado no fim da tarde de sexta-feira (6) e não se manifestou, mas, na ação em curso no STF, destacou a titulação de terras e créditos oferecidos aos assentados, afirmando, em linhas gerais, que o termo "reforma agrária" não pode se resumir à aquisição e desapropriação de terras.>
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