Há momentos em que a política se lembra de onde veio. Ela abandona os gabinetes acarpetados, desce as escadas de mármore, atravessa os salões e volta ao lugar onde sempre deveria ter estado: o chão das cidades, o rumor das ruas, o fôlego das pessoas comuns.
Nova York viveu um desses momentos. E o protagonista atende pelo nome de Zohran Mamdani.
Não é todo dia que alguém parte de 1% nas pesquisas, sem padrinhos influentes, sem caixa milionário, sem a bênção das elites políticas, e termina eleito prefeito socialista no coração do capitalismo mundial. Ainda menos quando esse alguém defende transporte gratuito, congelamento de aluguéis, expansão de creches públicas e combate à especulação imobiliária — temas que, nos círculos tradicionais, seriam tachados de ingênuos ou inviáveis.
Mas Mamdani venceu. E venceu porque ouviu antes de propor, porque devolveu o verbo a quem o conjuga diariamente — a população —, porque fez da rua o seu comitê e da escuta a sua estratégia.
Ele não triunfou porque era socialista, Como alguns especialistas tentaram rotular. Triunfou porque foi populista no sentido fundante do termo: populismo como proximidade, como mobilização voluntária, como convocação cívica. Populismo como gesto de devolver o governo ao governado.
E, sim, há nisso um eco histórico que ressoa por diferentes países e épocas.
Nos Estados Unidos, trata-se de uma espécie de antítese moral do trumpismo. Trump mobiliza pela ira; Mamdani, pela esperança. Um chama o povo contra inimigos internos; o outro chama o povo a agir com a cidade contra o abandono. Ambos populistas, mas em direções opostas — porque o populismo é linguagem, não destino moral.
O Brasil conhece bem essa força ambígua. Getúlio Vargas percebeu que o povo, quando convocado, é força de Estado. Criou direitos, modernizou instituições e instalou um pacto nacional. Mas também flertou com controles fortes.
Leonel Brizola, incendiário e visionário, fez da educação um instrumento de emancipação popular, da paixão política uma ponte para o futuro — e da rua o seu parlamento. Jânio Quadros, com sua vassoura simbólica, mostrou que o gesto simples pode virar avalanche — até que a avalanche o engolisse.
Cada um, à sua maneira, entendeu a mesma equação: a elite pode aplaudir, financiar ou declarar apoio, mas quem elege é o povo quando decide se mover.
Nova York decidiu se mover. E o mais interessante: ela não se moveu apenas pela “classe trabalhadora”, como previam os clichês: 48% dos votos de Mamdani vieram dos mais ricos; 44% dos mais pobres. Sua base não foi apenas o proletariado tradicional, mas millennials urbanos, progressistas cansados, moradores de bairros hipsters do Brooklyn e Queens. Gente sufocada pelo custo de vida, pressionada pelo aluguel, inquieta com o futuro e faminta por sentido político — a mesma sociedade líquida e ansiosa que Bauman descreveu, pedindo agora um Estado sólido no que importa.
Não se tratou de ideologia pura; tratou-se de vida real. Não se tratou de promessas mágicas; tratou-se de respostas simples para dores evidentes. E, sim, havia riscos macroeconômicos, como qualquer proposta que mexe nos fundamentos urbanos. Mas antes da técnica, veio a pergunta moral: para quem a cidade existe?
Mamdani venceu porque colocou essa pergunta no centro do debate e porque ofereceu respostas que não dependiam de jargão, mas de chão. Ele olhou para Nova York e viu algo que muitos tecnocratas ignoram: a cidade não é uma equação, é um organismo — e pessoas não cabem em planilhas.
Por isso, venceu sem promessas cifradas, sem medo de ser contestado, com jovens panfletando, vizinhos conversando, redes mobilizando, ruas pulsando. Foi política no sentido clássico: mobilização humana em torno de um propósito coletivo.
E se há uma lição aqui, ela não é americana, é universal: quando a política volta a ser vivida, ela volta a ser vitoriosa. Não há algoritmo capaz de substituir o toque da mão, o olhar no corredor do metrô, o café compartilhado no balcão da padaria. Não há consultor capaz de reproduzir o fervor genuíno de quem acredita. Não há máquina que resista a cidadãos que, em vez de assistir, decidem agir.
Foi assim com Getúlio, com Brizola, com tantos movimentos populares mundo afora. E agora, de forma inesperada, foi assim no coração do capitalismo global.
A política não renasce quando sobe, renasce quando desce. E quando volta a tocar o chão, o chão responde. O resto — slogans, rótulos, análises apressadas — é silêncio diante do óbvio: não há força mais imbatível do que um povo que resolve caminhar junto.
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