*Atenção, este texto contém spoilers do filme "Straw — Até a Última Gota"
Janiyah Wiltkinson, protagonista de "Straw — Até a Última Gota", filme lançado pela Netflix no início de junho, desperta como quem emerge de uma tormenta, de um torpor, de um estado de sobrevivência adormecida.
A menina ao seu lado fala, ri, dança. Mas está morta. Morreu na noite anterior. E ninguém sabe — ou pior, ninguém percebe. A filha morta, que aparece viva, é mais que alucinação — é consolo, invenção, artifício de uma mente esgotada que se recusa a admitir o fim. Ela representa o que resta de propósito, de sentido, de amor. Porque o luto de mulheres como Janiyah é socialmente negado. Não há licença. Não há amparo. Não há tempo.
O colapso só é suportável quando fantasiado com ternura. Essa menina-imagem é projeção, é defesa, é último laço. Não é loucura — é lucidez desesperada, criativa, compassiva. É o seu interior gritando por permanência.

Essa mãe não está apenas em um filme. Ela está ao seu lado na fila do SUS, na escola pública, no ônibus das seis. Está sitiada por contas, dominada pela urgência. Mas como a sociedade trata sua dor? Como falha o Estado? Como o coletivo responde?
Não há nada, não há providência. Ignoram. Isentam-se.
O luto, para mulheres negras e pobres, não é apenas ausência. É roubo. Roubo do direito de sofrer, do direito de parar, do direito de ser cuidada quando a vida se desintegra.
A necropolítica do cotidiano exige que ela seja forte, produtiva, resiliente. Que “dê conta”.
A alucinação da filha viva não é loucura — é resistência simbólica. É a criação, pelo inconsciente, de uma realidade onde ela ainda é vista, tocada, respeitada. Onde há alguma doçura. Algum apoio. Algum gesto de humanidade. A fantasia de que alguém, em algum lugar, vai acolher.
Mas ninguém acolhe.
O que vemos em "Straw" é a radiografia das violências estruturais:
- A solidão imposta pela maternidade não dividida;
- O racismo institucional que nunca legitima sua dor;
- A pobreza que transforma o tempo de luto em luxo burguês;
- A culpa internalizada por não ter sido capaz de proteger, sustentar, prever, evitar — sozinha.
O luto, aqui, não é apenas perda: é nulidade de sentido. Orfandade! É a pergunta que ecoa: “Pra que continuar se aquilo que dava sentido já se foi?” E quando não há resposta, o sistema recolhe, silencia, criminaliza.
É preciso reconhecer:
O luto é um direito.
O luto precisa de política pública.
O luto materno de mulheres negras e pobres não pode mais ser tratado como obstáculo à produtividade.
Porque é justamente nesse luto não autorizado que se abre a incubadora da desnutrição precarizada do ser.
É nesse não lugar de cuidado que floresce a desesperança, a automutilação psíquica.
Janiyah representa todas as que não puderam parar para chorar. As que tiveram que seguir com o colo vazio.
Se há algo que o filme nos grita, é que não é possível se autossocorrer o tempo todo sem jamais precisar do outro. O senso de comunidade sussurra desesperadamente pela presença. E não há saúde mental possível onde não há partilha, sopro de justiça social, acolhimento e ações de resgate.
Porque seguir viva sem sentido não é resiliência. É sobrevivência nua, triste e exausta.
E que nenhuma mulher seja condenada à solidão por ter entregue seu “ninho” com toda a sua inteireza. E quando a multidão, em alucinação e em clamor terminal, gritar seu nome — Janiyah — possamos ouvir ecoando o nome de todas nós!
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