Autor(a) Convidado(a)
É advogada, professora, mestranda em Direitos e Garantias Fundamentais. Vice-Presidente da Abracrim-ES

Saídas temporárias no sistema prisional: uma visão além do populismo

Em vez de eliminar uma prática que demonstra sucesso na grande maioria dos casos, o foco deve estar em melhorar a avaliação de riscos e fortalecer as estratégias de acompanhamento

  • Lígia Kunzendorff Mafra É advogada, professora, mestranda em Direitos e Garantias Fundamentais. Vice-Presidente da Abracrim-ES
Publicado em 19/01/2024 às 13h49

A recente tragédia em Minas Gerais, onde um policial foi fatalmente atingido por um detento em saída temporária de Natal, reacendeu intensamente o debate sobre a eficácia e a justificativa das liberações temporárias no sistema prisional brasileiro.

Em meio a declarações inflamadas, é crucial compreender a lógica e os objetivos por trás do benefício, que vão além da superficialidade do debate atual.

O cerne das saídas temporárias no sistema prisional reside em sua função ressocializadora, um conceito muitas vezes obscurecido por debates apaixonados. Esse direito não é uma brecha legal ou uma concessão indulgente; ele é uma ferramenta fundamental no processo de reabilitação dos detentos, preparando-os para uma reinserção bem-sucedida na sociedade, já que eles precisam atender a critérios rigorosos, como bom comportamento e cumprimento de parte significativa da pena, buscando beneficiar apenas aqueles com capacidade demonstrada de reintegração.

A lógica subjacente é de que o encarceramento deve visar não só a punição, mas também a reabilitação. Privar um indivíduo de sua liberdade é apenas um aspecto do processo. Para um efetivo cumprimento da pena, é imperativo que o sistema prisional também se dedique a readaptar os presos para a vida fora das grades.

Há quem diga que existem pessoas “irreabilitáveis”, mas assumir que alguns indivíduos são irremediavelmente criminosos e incapazes de mudança significa declarar a falência de nossa sociedade. Essa visão fatalista subestima o potencial humano para transformação e é um desserviço total para a sociedade.

Um relatório recente de um jornal, analisando o comportamento de quase 57 mil detentos que foram liberados temporariamente durante o período natalino em 18 unidades federativas, revelou que menos de 5% não retornaram às suas instituições prisionais.

Esses números devem ser contextualizados. Eles mostram que a vasta maioria dos detentos – mais de 95% – respeitou os termos de suas saídas temporárias e retornou ao sistema prisional. Esse alto índice de conformidade sugere que, para a maioria, as saídas temporárias são vistas como uma responsabilidade séria e uma oportunidade valiosa para a reintegração gradual na sociedade.

Ainda, é essencial destacar que qualquer caso de não retorno ou de crime cometido durante uma saída temporária é extremamente grave e merece atenção. Todavia, esses incidentes não devem ser usados para desacreditar toda o sistema, mas sim para refinar e aprimorar os critérios e processos de seleção e monitoramento.

Em vez de eliminar uma prática que demonstra sucesso na grande maioria dos casos, o foco deve estar em melhorar a avaliação de riscos e fortalecer as estratégias de acompanhamento, de forma a buscar que esse instituto de fato cumpra ainda mais seu papel ressocializador.

O populismo que se alimenta de emoções e reações imediatas, utilizando frequentemente o medo como ferramenta para ganhar apoio e promover agendas políticas específicas, se aproveita de discussões relevantes para a sociedade e faz um uso político e ideológico indevido de temas de grande impacto social, distorcendo a realidade e comprometendo uma avaliação objetiva das estratégias de reabilitação prisional, criando uma percepção mentirosa de que essas práticas são inerentemente perigosas e falhas.

Presídio no Espírito Santo: por falta de estrutura, presos do regime aberto estão indo pra casa
Presídio no Espírito Santo. Crédito: Foto do leitor

Essa abordagem sensacionalista simplifica um tema complexo, construindo uma narrativa de “bandidos versus cidadãos de bem”, que é notoriamente redutora e enganosa. Esse medo gerado pode impulsionar uma demanda por políticas mais duras e punitivas, sem a devida consideração de sua eficácia ou humanidade.

Portanto, é crucial que a discussão sobre as saídas temporárias seja conduzida de maneira informada, equilibrada e baseada em fatos, para garantir que as políticas adotadas sejam eficazes na promoção da segurança pública e na reabilitação dos detentos. Somente assim podemos esperar alcançar um sistema de justiça penal que seja efetivamente centrado no ser humano.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

A Gazeta integra o

Saiba mais

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.