O Supremo Tribunal Federal sempre foi mais do que um Tribunal.
Foi, ao longo de sua história, o último abrigo da dignidade humana quando todas as outras portas se fechavam. Foi o espaço onde minorias encontraram voz, onde a Constituição deixou de ser papel e passou a ser vida concreta.
Por isso, o voto proferido pelo ministro André Mendonça no julgamento das ADPFs que discutem o mínimo existencial e o tratamento do superendividamento causa perplexidade institucional — e profunda dor constitucional.
Não se trata aqui de uma divergência técnica trivial. Trata-se de uma escolha histórica.
Se prevalecer o entendimento do não conhecimento das ações, o Supremo se recusará a enxergar a realidade social que bate à sua porta. Se, superada a preliminar, prevalecer a improcedência no mérito, o Supremo dará um passo ainda mais grave: afirmará, em linguagem jurídica polida, que a dignidade humana pode ser reduzida a um número fixo, frio e abstrato.
O mínimo existencial, no voto, deixa de ser um conceito constitucional aberto, vinculado à vida digna, para se tornar uma variável econômica administrável.
E quando isso acontece, a Constituição deixa de proteger pessoas — e passa a proteger sistemas.
O argumento da “natureza infralegal” do decreto não é neutro.
Ele funciona, na prática, como uma barreira processual que impede o Supremo de enfrentar o drama humano que a própria Constituição lhe confiou. O Tribunal que nasceu para guardar preceitos fundamentais decide não olhar para eles porque estariam “indiretamente” violados.
Mas a fome também é indireta.
A exclusão também é indireta.
A humilhação cotidiana de milhões de brasileiros endividados também não aparece em linha reta nos autos.
O voto afirma que não há ofensa direta à dignidade da pessoa humana.
Mas como não há ofensa quando se fixa, por decreto, um valor que não paga aluguel, não compra comida, não garante transporte, não assegura saúde?
A Constituição de 1988 não prometeu sobrevivência mínima.
Prometeu vida digna.
E vida digna não cabe em planilhas.
O Supremo já foi maior do que isso.
Em 2005, quando afirmou que o Código de Defesa do Consumidor se aplica às instituições financeiras, o Tribunal disse “não” ao sistema bancário. Disse “não” ao argumento da estabilidade econômica usada como escudo contra direitos fundamentais. Disse “sim” às pessoas.
Hoje, corre-se o risco de fazer o caminho inverso.
Ao aceitar que a proteção da dignidade pode ser sacrificada em nome da “segurança jurídica do mercado”, o Supremo se aproxima perigosamente de uma lógica que inverte valores constitucionais: o sistema passa a ser protegido das pessoas, e não o contrário.
Não se ignora a complexidade do tema.
Não se despreza o impacto econômico.
Mas a Constituição nunca autorizou que a dignidade humana fosse tratada como externalidade.
O voto sustenta que o Judiciário deve exercer deferência técnica.
Mas há um ponto em que a deferência se transforma em abdicação.
Quando o Tribunal Constitucional se afasta da dor social concreta, alguém ocupa esse espaço. E, historicamente, nunca foi o povo.
O Supremo vive um dos momentos mais difíceis de sua história institucional.
É alvo de críticas, desconfianças e tensões. Justamente por isso, este julgamento não é apenas jurídico. Ele é simbólico.
Se o STF disser que o mínimo existencial pode ser fixado por decreto, sem controle constitucional efetivo, estará dizendo que a dignidade é negociável.
Estará dizendo que a Constituição suporta menos do que prometeu.
E isso mancha.
Não um voto isolado.
Mas a memória de um Tribunal que sempre foi chamado quando tudo falhava.
Ainda há tempo.
Ainda há votos.
Ainda há história a ser escrita.
Porque, no fim, quando o Supremo fala, ele não decide apenas processos.
Ele decide de que lado da dignidade escolheu ficar.
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