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É psicólogo clínico, atua na área de dependência química e codependência ( individual e grupo) e também terapeuta Cognitivo Comportamental

Por que você não bebe? O álcool é a única droga que precisa de justificativa

A pressão social, velada ou explícita, é uma constante. Nesse cenário, a jornada de um alcoólico em recuperação torna-se um ato diário de imensa coragem e resiliência

  • Edson Gaspar de Moraes É psicólogo clínico, atua na área de dependência química e codependência ( individual e grupo) e também terapeuta Cognitivo Comportamental
Publicado em 26/06/2025 às 12h54

O álcool está intrinsecamente ligado à nossa vida social. Presente em celebrações, encontros casuais e rituais de relaxamento, seu consumo é frequentemente visto como algo normal, inofensivo e até mesmo essencial para a interação. No entanto, por trás dessa fachada de normalidade, esconde-se um impacto devastador causado pelo uso abusivo, um custo silencioso que a sociedade muitas vezes escolhe ignorar ou minimizar.

O impacto do abuso de álcool é multifacetado e atinge a sociedade em diversas esferas. Na saúde, sobrecarrega o sistema público e privado com doenças hepáticas, cardiovasculares, neurológicas, transtornos mentais e, claro, a própria dependência.

Economicamente, resulta em perda de produtividade no trabalho, acidentes (incluindo os de trânsito, com consequências frequentemente trágicas), aumento da criminalidade e custos diretos com tratamento e reabilitação. Socialmente, fragiliza laços familiares, contribui para a violência doméstica, o abandono e o comprometimento do desenvolvimento de crianças e adolescentes expostos a ambientes de alcoolismo. A segurança pública é diretamente afetada por crimes e incidentes relacionados ao consumo excessivo.

O grande paradoxo é que, enquanto os dados e as evidências dos malefícios se acumulam, a sociedade parece cada vez mais anestesiada diante do problema. O álcool é amplamente promovido e glamourizado pela mídia e pela cultura popular. Beber é frequentemente retratado como sinônimo de diversão, sucesso e relaxamento.

Essa normalização cria uma cegueira coletiva para os perigos e dificulta a percepção dos sinais de que o consumo está se tornando problemático, tanto individualmente quanto no âmbito comunitário. A linha entre o "uso social" e o abuso torna-se tênue e facilmente cruzada em um ambiente que incentiva o consumo constante.

Nesse cenário, a jornada de um alcoólico em recuperação torna-se um ato diário de imensa coragem e resiliência. Viver em sobriedade hoje significa navegar por um mundo onde o gatilho está em toda parte: nas prateleiras dos supermercados, nos comerciais de televisão, nas mesas dos restaurantes, nas festas, nos eventos esportivos. A pressão social, velada ou explícita ("por que você não bebe?"), é uma constante.

O álcool é a única droga que a pessoa precisa justificar porque não usa ou deixou de usar.

Manter-se firme no propósito da sobriedade exige um esforço contínuo em um ambiente que parece conspirar contra ele.

Homem bebendo cerveja em casa: aumento no consumo de bebida alcoólica na quarentena preocupa especialistas
Homem bebendo cerveja em casa: aumento no consumo de bebida alcoólica na quarentena preocupa especialistas. Crédito: Freepik

Como, então, um alcoólico em recuperação consegue manter a sobriedade hoje? Não é por acaso, nem por simples força de vontade isolada. É um processo ativo que envolve diversas ferramentas e estratégias essenciais:

  • Reconhecimento e aceitação: O primeiro passo é fundamental, admitir a impotência perante o álcool e a necessidade de ajuda, evitando pessoas, lugares e situações que até então levam a pessoa a beber.
  • Rede de apoio forte: Conectar-se com outros indivíduos em recuperação, através de grupos de apoio como Alcoólicos Anônimos (AA), é vital. Compartilhar experiências, desafios e vitórias cria um senso de pertencimento e reduz o isolamento.
  • Acompanhamento profissional, se a pessoa tem algum outro transtorno: Terapia individual ou em grupo ajuda a entender as causas subjacentes da dependência, desenvolver mecanismos de enfrentamento saudáveis para o estresse e as emoções, e trabalhar na prevenção de recaídas.
  • Desenvolvimento de novas ferramentas: Aprender a lidar com gatilhos, recusar ofertas de bebida de forma assertiva, e encontrar novas formas de lazer e relaxamento que não envolvam álcool são habilidades cruciais.
  • Foco em "Um dia de cada vez": A sobriedade é uma escolha diária. A ideia de "apenas por hoje" , como o slogan do A.A. “evite o primeiro só por hoje”, torna o desafio gerenciável e menos esmagador
  • Cuidado com a saúde física e mental: Uma rotina saudável, incluindo exercícios físicos, boa alimentação e sono adequado, fortalece o corpo e a mente na luta contra a dependência.
  • Ressignificação da vida: Encontrar propósito, redescobrir paixões e construir uma vida gratificante livre do álcool é o que sustenta a sobriedade a longo prazo.

A sobriedade em um mundo que normaliza o álcool é uma prova diária de força interior. Enquanto a sociedade continua a fechar os olhos para os males do uso abusivo, a luta do indivíduo em recuperação serve como um lembrete pungente dos perigos que se escondem à vista de todos.

É urgente que a sociedade desperte para o impacto real do álcool, promova uma cultura de consumo responsável e, acima de tudo, ofereça compreensão, empatia e apoio genuíno àqueles que escolheram o árduo, mas recompensador, caminho da sobriedade.

A vida liberta da dependência é possível, e o Programa de Recuperação de Alcoólicos Anônimos é hoje reconhecido pela medicina como o programa que oferece melhores resultados. A gratidão demonstrada pelos membros do A.A. que procuram transmitir gratuitamente o que receberam de graça é uma inspiração silenciosa que merece ser vista e valorizada.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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