A proposta de regulamentação da reforma tributária, especificamente o Projeto de Lei Complementar nº 108/2024, vem gerando calorosos debates entre juristas e políticos do país. Entre os pontos de maior preocupação, destacam-se os artigos 111 e 112, que instituem o Comitê de Harmonização sem a devida representação da sociedade civil e das advocacias públicas dos entes da Federação. Trata-se de um movimento que acende alertas não apenas jurídicos, mas institucionais e federativos.
O modelo proposto rompe com o que a Constituição de 1988 estruturou como eixo básico para o funcionamento das instituições republicanas e democráticas, o controle de legalidade, o contraditório, a imparcialidade e a necessária harmonia entre os poderes e suas funções.
O Comitê, ao ser composto exclusivamente por membros da administração tributária — auditores fiscais da Receita Federal, dos estados e dos municípios — vulnera a paridade de armas hoje existente, entre fisco e o contribuinte, não garantindo a sua participação de forma decisiva e efetiva nos órgão de julgamento, e viola o artigo 103-A da Constituição, ao não utilizar a representação jurídica do Estado como filtro cogente entre as decisões judiciais e a conduta da administração tributária, gerando desequilíbrio com os demais órgãos da máquina pública que exercem, de forma legítima, o poder tributário.
Em um cenário ideal, a reforma deveria caminhar rumo à pacificação dos conflitos com a observância expressa e dos precedentes qualificados do STJ e do STF, à legitimação do poder tributário com o fortalecimento da sua abertura democrática e à simplificação do sistema, e não ao contrário.
No entanto, ao excluir as Procuradorias nacional, dos estados e dos municípios, bem como os representantes das sociedades civil das decisões vinculantes desse Comitê e ao possibilitar uma revisão por cima e somente por auditores dos julgamentos e entendimentos sobre a aplicação do direito e das decisões administrativas, o PLP 108/24 desconsidera o papel técnico e constitucional dos advogados públicos e o próprio motivo da existência do Estado existir para o povo, conferindo à fiscalização não apenas o poder de lançar e arrecadar, mas também o de legislar sobre entendimentos, julgar com exclusividade em última instância e harmonizar divergências — tudo isso sem o necessário controle jurídico de legalidade e sem legitimar o nosso manicomial sistema tributário.
Tal desequilíbrio não é novo. Reproduz-se, aqui, a lógica de centralização e de verticalização da relação tributária, que já se mostrou disfuncional. O contencioso administrativo e judicial tributário, conforme apontado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), alcança patamares alarmantes no Brasil — aproximadamente 75% do PIB —, fruto, entre outros fatores, da ausência de vinculação da Administração Tributária aos precedentes qualificados dos tribunais superiores.
É justamente essa desconexão que tende a se ampliar com os dispositivos propostos nos artigos 111 e 112, que não impõem qualquer obrigatoriedade de observância aos entendimentos do STF e do STJ, criando uma instância administrativa autônoma, paralela e dissonante do sistema judicial.
Além disso, a exclusão da sociedade civil e da Ordem dos Advogados do Brasil do Comitê de Harmonização afronta o princípio republicano e a participação popular, que são pilares da nossa democracia constitucional. O argumento da eficiência arrecadatória, ainda que legítimo, não pode ser utilizado como escudo para esvaziar espaços diálogo. O fisco não pode — nem deve — legislar em causa própria.
O manifesto assinado por diversas associações representativas da advocacia pública e privada — entre elas, AASP, IASP, ABDF, CESA, MDA, ANAPE, CONPEG, SINSA, SINPROFAZ e seccionais da OAB — não se opõe à reforma em si, mas clama por sua condução responsável, democrática e coerente com a Constituição.

As propostas são sensatas e executáveis, como a inclusão paritária de representantes da sociedade civil e das procuradorias no Comitê e a preservação do devido processo legal na formulação das decisões administrativas de caráter vinculante.
O debate de assuntos como esses e outros que redesenham a reforma tributária no país é de extrema importância entre vários setores. Por isso, nos dias 14 e 15 de maio mais de 400 advogados, entre públicos e privados, estarão reunidos no XII Encontro Nacional das Procuradorias Fiscais, em Vitória, organizado pela Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape), Associação dos Procuradores do Estado do Espírito Santo (Apes) e da Procuradoria Geral do Espírito Santo (PGE).
Reforma tributária não é sinônimo de concentração de poder, mas de redesenho institucional baseado em diálogo, democracia, equilíbrio, e, principalmente, constitucionalidade. A omissão do PLP 108/24 quanto à composição e vinculação jurídica do Comitê de Harmonização precisa ser corrigida, sob pena de comprometer os próprios objetivos da reforma.
Não se trata apenas de uma disputa corporativa. Trata-se de garantir que o novo sistema tributário nasça comprometido com a legalidade, a paridade e a transparência. Afinal, como bem lembra o texto constitucional, o poder emana do povo — e deve ser exercido em seu nome, e não à sua revelia.
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