No folclore brasileiro, o Curupira é o guardião das florestas, uma figura mítica que protege a natureza enganando os caçadores: seus pés virados para trás confundem os rastros e desorientam quem ameaça a ordem natural. No campo da segurança pública, porém, tem emergido uma figura similar — mas invertida: não aquela que engana os maus para proteger os bons, e sim a que desorienta os justos, perturba a ordem, inverte os valores e apresenta isso como virtude.
Refiro-me a uma parcela expressiva dos que influenciam o debate público sobre justiça criminal: intelectuais, acadêmicos e formadores de opinião que, com prestígio e sofisticação teórica, muitas vezes produzem diagnósticos que minimizam o sofrimento das vítimas e relativizam a gravidade dos delitos. Em lugar de contribuírem para o fortalecimento das instituições, parecem dedicados a desconstruí-las, desmontando pilares essenciais da responsabilização e da proteção social.
Não raro, defendem a impunidade como expressão de humanidade, tratam o crime como inevitável — ou até como expressão legítima de contextos estruturais — e passam a ver a vítima como entrave moral à reinterpretação da realidade. Ao colocarem ênfase quase exclusiva nas falhas do sistema punitivo, acabam por deslegitimar a própria ideia de justiça. Assim, os que sofrem violência tornam-se invisíveis ou, pior, inconvenientes para uma narrativa redentora.
Como bem advertiu Thomas Sowell ao tratar dos “ungidos”, há os que, convencidos de sua superioridade intelectual e moral, acreditam ter uma missão de reorganizar o mundo segundo suas abstrações. Não partem da realidade para pensar soluções; preferem ajustar a realidade às suas ideias. Parece uma seita com seus sacerdotes e rituais de sacrifício. Nesse contexto que ecoa com precisão a advertência:
“No altar da ideologia, a Verdade e a realidade são sacrificadas diariamente pelos novos sacerdotes: intelectuais, acadêmicos e formadores de opinião que preferem dogmas a fatos.”
O resultado é a corrosão silenciosa dos instrumentos que ainda sustentam a ordem e a justiça. O policial é retratado como vilão. O promotor, como inquisidor. O juiz, como executor de uma engrenagem opressora. E o autor da violência? Esse passa a ser visto mais como símbolo do fracasso social do que como responsável por seus atos. O desfecho é a inversão: a vítima real se torna irrelevante diante da construção simbólica do agressor.
Essa lógica produz uma erosão dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, na medida em que os direitos fundamentais deixam de ser universais e passam a ser escudos seletivos. A justiça penal, ao invés de cumprir seu papel civilizatório, acaba instrumentalizada por discursos que deslegitimam sua função de contenção da violência e promoção da paz social.
Muitos dos que sustentam tais teses estão distantes das consequências reais da criminalidade. Ignoram que, na ausência de punição proporcional e eficaz, não há liberdade, mas sim domínio da força bruta. Uma sociedade que naturaliza a impunidade regride ao estado de natureza — a “guerra de todos contra todos” descrita por Hobbes — em que o mais forte dita as regras e o mais vulnerável paga o preço.
Por isso, é essencial desvelar o discurso que, sob a aparência de sofisticação moral, mina os fundamentos da convivência civilizada. A segurança pública exige responsabilidade, lucidez e coragem — sobretudo para resgatar princípios que, embora simples, parecem esquecidos: proteger o inocente não é opressão; responsabilizar o culpado não é crueldade; e justiça sem consequência é apenas retórica inútil.
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