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É doutor em Direitos e Garantias Fundamentais, professor de Direito Penal da FDV e advogado criminalista

O caso da boate Kiss e a morte lenta do Direito

Se não fosse pela vaidade e pela busca desenfreada por holofotes, a tragédia jamais seria submetida a julgamento pelo Tribunal Popular do Júri

  • Israel Domingos Jorio É doutor em Direitos e Garantias Fundamentais, professor de Direito Penal da FDV e advogado criminalista
Publicado em 21/12/2021 às 14h00
Condenados por incêndio na boate Kiss
Condenados por incêndio na boate Kiss. Crédito: Juçiano Vardi/TJRS

Com o máximo do respeito pela dor e o sofrimento das vítimas e de suas famílias, sigo afirmando que o estrago causado pelo "Caso Kiss" no sistema jurídico-penal brasileiro talvez seja sem volta. Se não fosse pela vaidade e pela busca desenfreada por holofotes, a tragédia jamais seria submetida a julgamento pelo Tribunal Popular do Júri.

Os jurados, leigos, dificilmente compreenderão a diferença entre dolo eventual e culpa consciente. Mas podem ser facilmente convencidos de que, se a condenação for por homicídios culposos, a pena será ínfima e a impunidade prevalecerá.

Acontece que é até difícil criar um exemplo mais perfeito para o que tecnicamente se denomina “culpa consciente” - uma atitude imprudente, cujos riscos são conhecidos pelo agente, mas que sinceramente não acredita que eles venham a se concretizar (até porque, se isso acontecer, a desgraça que sobre ele próprio há de sobrevir é considerada insuportável por qualquer pessoa mentalmente sadia).

Por isso, é seguro dizer que o circo começa com a denúncia do Ministério Público por homicídio doloso. O juiz teve a chance de interromper o mórbido show, mas deu-lhe prosseguimento com a decisão de pronúncia e adicionou um espetáculo todo seu, decretando a prisão de réus que aguardaram o processo inteiro, por anos, em liberdade, mas que subitamente desenvolveram um "periculum libertatis" (viraram fontes de perigo ambulantes).

Tivemos o alento de ver um desembargador refrear o apetite punitivista por meio da concessão de um habeas corpus preventivo. Motivo de orgulho, fonte de esperança. Há muitos juízes corajosos, conscientes, alheios ao punitivismo populista que domina a maioria dos operadores das carreiras jurídicas!

Mas a comemoração dura pouco, e a decisão do ministro Fux, determinando a prisão, chega como a reação do Direito Penal midiático e politiqueiro ao feixe de luz que emana de julgados autenticamente liberais.

A fundamentação não é só fraca. É constrangedora, embaraçosa. Revela um julgador (que não ocupa cargo eletivo) mais preocupado com ser simpático e popular do que com sua elevada missão de defender a Constituição. A técnica vem morrendo. O Direito está em estado vegetativo nesse país. Querem encarcerar mais? Estamos prendendo pouco? Que se alterem as leis!! Que se mude a Constituição!

Nós, defensores da liberdade, vamos para o enfrentamento ideológico. Mas, se os idólatras do cárcere vencerem, que o façam com hombridade, por meio do devido processo legislativo. Com as leis que temos, a liberdade é regra, a prisão é exceção. A prisão cautelar tem requisitos rigorosos.

Não cabe na imensa maioria dos casos em que é decretada, com base em presunções abstratas e pseudofundamentos fabricados sem qualquer conexão com os autos. No caso Kiss, nem mesmo essa preocupação se observa.

O ministro deixa bem claro que a prisão deve ser imposta não porque é necessária, mas porque acalma o povo. O caso se consolida como uma das maiores máculas judiciárias da história desse triste país, órfão de protetores para sua jovem democracia.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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