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É psicanalista. Foi coordenadora do projeto do Cais das Artes de 2007 a 2010

Memórias da criação do Cais das Artes

Ao coordenar o processo de constituição do Cais das Artes, pude acompanhar, e testemunhar de forma bem próxima, o trabalho de criação desenvolvido por Paulo Mendes da Rocha

  • Cristina Gomes É psicanalista. Foi coordenadora do projeto do Cais das Artes de 2007 a 2010
Publicado em 09/08/2025 às 10h00

Ao realizar uma travessia pela Baía de Vitória, me deparei com o prédio erguido: a linda obra de arte de Paulo Mendes da Rocha. Esse “reencontro” trouxe à memória as dezenas de reuniões e grupos de trabalho em torno do projeto. Para que essa obra pudesse ser iniciada, do vislumbre à ordem de serviço, passaram-se quase quatro anos de sonhos, estudos, superações e desmonte de muitos obstáculos.

Posso dizer que as obras físicas vieram logo após um intenso período de obra intelectual e política para colocar de pé o projeto do Cais das Artes. Vale lembrar que a iniciativa só pôde se concretizar a partir da confluência entre três desejos de três capixabas, coincidentemente de três Paulos.

Paulo Hartung que, quando prefeito de Vitória, garantiu o terreno para que ali fossem edificados equipamentos culturais de amplo acesso à população. E que, como governador, viabilizou o projeto e o início das obras. Paulo Herkenhoff, um cachoeirense conhecido internacionalmente como uma das referências em curadoria. Paulo Mendes da Rocha, um arquiteto de renome internacional que venceu o maior prêmio de arquitetura do mundo, o Pritzker.

De conversa em conversa, de imaginações a visões, a ideia começou a tomar corpo. Com a urgência de quem suspeita que a inspiração tivesse chegado, Paulo Mendes da Rocha, em um de nossos diversos encontros, riscou os traços da materialidade imaginada num guardanapo branco de papel. A ideia se fez projeto.

Da urgência do papel que estivesse à mão ao planejamento da prancheta e dos cálculos digitais, o Cais das Artes traduz a inspiração vulcânica, a vontade do belo. Paulo Mendes da Rocha pôde, durante o processo de criação, conjugar a técnica, os cálculos e o útil para materializar a beleza. Com Arquitetura fez Arte.

Ao coordenar o processo de constituição do Cais das Artes, pude acompanhar, e testemunhar de forma bem próxima, o trabalho de criação desenvolvido por Paulo Mendes da Rocha. Vale dizer que a escolha de Paulo Mendes vai além do fato de ele ser grande mestre da arquitetura nacional e internacional, um talento conhecido e reconhecido mundialmente por suas obras. Foi por tudo isso, mas também por ele ser, ao mesmo tempo, como artista, cidadão do mundo e capixaba. O fato de ele ter nascido em Vitória e de ter passado aqui parte de sua infância certamente influenciou sua obra arquitetônica.

A antiga relação com a cidade, marcada em seu inconsciente por vestígios de memórias e sonhos, possibilitou um excepcional diálogo entre as referências do menino e os propósitos do arquiteto, o que está francamente simbolizado no Cais das Artes. Assim, é possível dizer que, nessa tarefa, Paulo mergulhou profundamente em sua história. Aliás, isso é o que pode definir um artista, pois há uma inegável correlação entre a arte e as fantasias encenadas nos jogos e brincadeiras das crianças.

Cais das Artes
Obras do Cais das Artes. Crédito: Fernando Madeira

A arte, nesse sentido, seria a projeção de um mundo infantil que habita em todos nós. A arte que também possibilita dar um destino digno e socialmente valorizado ao que, originalmente, na condição humana, comparece como força destrutiva. Isso porque, em nossa subjetividade, onde nascem a crueldade e a vontade de destruição, surgem também as bases para a criação das diferentes formas de arte.

E, nessa evidência do existir humano, localiza-se um dos fundamentos da própria motivação de se construir o Cais das Artes. A razão originária do Cais é amplificar a contribuição das artes à constituição de uma realidade menos beligerante. Esse foi o motor do meu envolvimento neste projeto grandioso e ousado, por entender que bons frutos são colhidos da ligação da Psicanálise com a Arte.

Também como disse à ocasião de lançamento da obra, ofertar acesso à formação e à contemplação artística – tal como visa o Cais das Artes em sua função precípua – significa oferecer aos capixabas a possibilidade de uma outra existência, mais criativa e menos inóspita.

Numa realidade onde existam mais artistas, num lugar em que as artes estejam incorporadas ao cotidiano das pessoas, talvez tenhamos menos violência e um pouco mais de bem-estar coletivo.

Cais das Artes
Cais das Artes. Crédito: Fernando Madeira

Meu desejo é que o Cais das Artes, além de um espaço único e vanguardista, um lugar privilegiado pela facilidade de acesso a todos os capixabas, indo na contramão da segregação, tão marcante em nossos tempos, seja também um espaço de inclusão social pela Arte e pela Cultura.

E, mais que isso: que o Cais possa vir a ser um marco de refundação para o capixaba acerca de sua própria percepção de identidade. Como sabemos, somos historicamente carentes de elementos que nos permitiriam construir traços próprios que dariam um justo lugar a essa origem, à nossa história.

Como se vê, à beira do Cais das Artes, mergulhei num oceano de reminiscências. Entre as marcas da minha experiência subjetiva e uma sumária linha do tempo institucional dos primórdios desse empreendimento histórico, compartilho esse percurso ciente de que a memória – o que resulta da operação sociopolítica e cultural de lembrar e esquecer – é o lastro de um presente e um futuro ancorados em reais possibilidades de avanços civilizatórios.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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