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Médicos têm a prerrogativa e o dever da escolha do tratamento ideal

Nós, médicos, devemos lutar pela saúde de nossos pacientes de forma vigorosa e isso significa senso rigoroso da avaliação do risco-benefício e responsabilidade sobre nossos atos que podem gerar benefícios, mas também eventuais malefícios

  • Pedro Paulo Araujo Herkenhoff
Publicado em 09/07/2020 às 10h00
Atualizado em 09/07/2020 às 10h00
OMS retirou em definitivo a cloroquina dos testes para tratamento de Covid-19
Medicamentos em teste para Covid-19. Crédito: jcomp/ Freepik

Tempos de pandemia trazem temor e, por vezes, pânico, principalmente, quando o agente causal é novo e não se conhece tratamento eficaz. Esse é o caso da Covid -19 (coronavirus disease 19), que pode se agravar, levando a SARS-COV 2 ( do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome), doença descrita pela primeira vez no final de dezembro de 2019 e para a qual ainda não houve nenhum tratamento efetivo comprovado, a despeito de várias tentativas em ensaios clínicos já concluídos e outros ainda em andamento.

Dos estudos e tentativas de tratamento clínico da Covid-19 realizados desde o início deste ano, nenhum dos agentes até agora testados foi capaz de produzir benefício clinico significativo (alguns antivirais poderiam ter algum benefício em grupos específicos de pacientes e os corticoides, em artigo aguardando a publicação final, em especial a dexametasona). Outros tratamentos testados foram inócuos ou mesmo possivelmente deletérios.

Ao mesmo tempo, a urgência da doença com alta ocorrência e temida mortalidade levou o debate da questão técnica para fora da seara dos profissionais de saúde, tirando o foco do que de fato é primordial: disponibilizar para cada paciente o tratamento com melhor evidência disponível (Sackett), a partir da escolha feita em conjunto com o paciente (ou familiares quando possível), após esclarecido os riscos e benefícios de cada tratamento.

Nesse contexto, vale lembrar que o termo e os conceitos da Medicina Baseada em Evidências (do Inglês Evidence-Based Medicine) foram descritos por Sackett, Guyatt e colegas, nos anos de 1990, primando pelo caráter cientifico da medicina, ao produzir e analisar as evidências cientificas disponíveis para a tomada de decisão médica.

Em que pesem algumas críticas a esse termo, pelo próprio David Sackett (British Medical Journal, mai. 2000), pela excessiva banalização e mesmo distorções de seu uso por agentes de serviços de saúde, sensacionalismo de alguns “experts” e mau uso por alguns setores do marketing da indústria farmacêutica, ficou o conceito e sua máxima: “O uso da melhor evidencia científica disponível para cada modalidade diagnóstica ou terapêutica”.

À luz das premissas da Medicina Baseada em Evidência, até hoje, infelizmente, não temos um tratamento farmacológico específico, que comprovadamente possa gerar redução de letalidade e/ou da gravidade dos casos de Covid -19. Sendo assim, o manejo clínico é feito de forma a disponibilizar medidas de suporte adequado e uso de medicamentos de acordo com o julgamento clínico da equipe responsável pelo paciente.

USO CRITERIOSO POR MÉDICOS

Com base nessa análise judiciosa medicamentos ditos off-label (fora da bula) poderiam eventualmente ser prescritos em vista de plausibilidade fisiopatológica em casos específicos e que não haja alternativas terapêuticas com evidencias mais consistentes, ou seja, na ausência do tratamento comprovadamente eficaz, o médico pode lançar mão, de forma criteriosa, de drogas de benefício não comprovado, mas com alguma plausibilidade, desde que não haja nenhuma evidência forte de que tal tratamento possa causar mais dano que benefício ao paciente.

Em conformidade com a Medicina Baseada em Evidências, o uso de medicamentos com base na experiencia pessoal do médico não pode ser desprezada, mas não deve por si só embasar tomadas de decisão para outros pacientes e muito menos fundamentar protocolos terapêuticos e políticas públicas, que podem, em última instância, vir a ser deletérios para o próprio paciente a quem se quer cuidar e se possível curar.

Também é importante salientar que médicos devem tomar decisões baseadas na melhor evidência científica disponível e devem fazê-las sem pressões adicionais àquelas que naturalmente já existem nessas circunstancias de pandemias. A pressão midiática na adoção de tratamentos de eficácia não comprovada não é novidade (a própria vitamina C foi usada para combater gripes no passado sem o crivo de evidências cientificas consistentes).

A angústia dos médicos e dos possíveis candidatos a tratamento agrava o problema na tomada de decisão em casos de doença de alta prevalência e com alta taxa de mortalidade, como é o caso do Covid-19, hoje.

RIGOR NA AVALIAÇÃO DO RISCO BENEFÍCIO

É preciso atentar para o fato de que a banalização da divulgação de benefícios não comprovados de medicamento é perigosa e possivelmente deletéria a quem se pretende ajudar. Tentar vulgarizar o tratamento médico exercendo pânico e angústia na população com certeza não vai ajudar as pessoas.

Nós médicos devemos lutar pela saúde de nossos pacientes de forma vigorosa e isso significa senso rigoroso da avaliação do risco-benefício e responsabilidade sobre nossos atos que podem gerar benefícios, mas também eventuais malefícios a quem pretendemos ajudar.

Ao se dar ênfase excessiva a medicamentos de beneficio não comprovado retira-se o foco do que de fato é o mais importante: a adequada abordagem a esses pacientes com diagnóstico rápido dos casos suspeitos com isolamento dos casos e dos contactantes, identificação precoce de complicações (e se possível evitá-las) assim como rápida disponibilidade dos melhores cuidados médicos e hospitalares para os pacientes com apresentação clínica mais grave.

Por fim, o médico é quem tem a prerrogativa e o dever de escolha do tratamento ideal para o seu paciente sabendo das implicações éticas e legais dessa decisão: a busca pela melhor evidência científica disponível é que deve nortear essa decisão.

O autor é médico cardiologista, formado em 1988 na Ufes. Foi presidente da Sociedade Espírito-santense de Cardiologia e participou como investigador principal local do Global Registry in Acute Coronary Events - GRACE Registry

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