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É professora universitária, advogada, mestre em Direitos e Garantias Fundamentais e doutoranda em Estudos de Gênero pela Universidade de Lisboa

Demissão de Lisa Cook por Trump é gesto simbólico contra mulheres em espaços de poder

Ela reúne uma trajetória acadêmica e profissional notável: doutora pela Universidade da Califórnia, Berkeley, formada em Oxford, professora de economia e relações internacionais na Universidade Estadual de Michigan, poliglota em cinco idiomas

  • Vanise Lima e Silva Cavalheiro É professora universitária, advogada, mestre em Direitos e Garantias Fundamentais e doutoranda em Estudos de Gênero pela Universidade de Lisboa
Publicado em 31/08/2025 às 10h00

A decisão de Donald Trump de intervir diretamente no Banco Central americano, ao determinar a demissão da conselheira diretora, Lisa DeNell Cook, levanta sérias preocupações sobre o enfraquecimento da independência institucional americana. Esse gesto, porém, ultrapassa o campo econômico: insere-se numa lógica mais ampla de reafirmação de uma soberania masculina.

Como descreve Paul Preciado (filósofo espanhol), a ascensão da extrema direita expressa uma reorganização do patriarcado em resposta aos avanços feministas e democráticos, configurando uma verdadeira “guerra de mil anos” contra corpos, vidas e prazeres.

A intervenção de Trump atinge diretamente Lisa Cook, primeira mulher negra a integrar o conselho do Federal Reserve (FED), que tem por finalidade promover a estabilidade econômica e financeira, mantendo o pleno emprego, preços estáveis e taxas de juros moderadas.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Crédito: EVAN VUCCI/AP

Cook reúne uma trajetória acadêmica e profissional notável: doutora pela Universidade da Califórnia, Berkeley, formada em Oxford, professora de economia e relações internacionais na Universidade Estadual de Michigan, poliglota em cinco idiomas — incluindo o russo — e especialista em desenvolvimento internacional, tendo contribuído para a reconstrução de Ruanda após o genocídio de 1994. Sua principal virtude é a percepção humanizada da economia, terreno muitas das vezes árido e insensível.

Atacar uma figura como Cook não é apenas afrontar a autonomia institucional: é também um gesto simbólico contra a presença de mulheres — e, sobretudo, de mulheres negras — em espaços de poder. Esse ataque ecoa o que Preciado descreve como uma ofensiva masculinista global: não se busca apenas o controle político ou econômico, mas a reconfiguração das hierarquias de gênero e raça que estruturam nossas sociedades. Nos EUA, esse movimento já se traduz em debates sobre a retirada do direito ao voto feminino, por exemplo, aproximando perigosamente a realidade da ficção distópica retratada em The Handmaid’s Tale.

No Brasil, a mesma lógica se expressou em diversos momentos políticos. Um dos mais emblemáticos ocorreu em 2014, quando o então deputado Jair Bolsonaro, hoje ex-presidente, afirmou em plenário que não “estupraria” a deputada Maria do Rosário, ex-ministra dos Direitos Humanos, porque ela “não merecia”.

Rosário, com longa trajetória de defesa dos direitos humanos — especialmente na proteção de crianças e adolescentes contra a violência, na luta contra o trabalho escravo e na promoção da igualdade de gênero — foi alvo de um ataque que não se restringia a ela como pessoa, mas que simbolizava a tentativa de reduzir mulheres na política ao silêncio e à humilhação pública.

Nesse mesmo tom, em abril de 2016 ao declarar seu voto a favor do impeachment da então presidenta do Brasil, Dilma Roussef, Jair Bolsonaro dedicou seu voto ao torturador dela na ditadura, nestes termos: “Pela memória do Coronel Ustra, o pavor de Dilma Roussef”.

Ora, basta ler um livro como “Vozes do Golpe” (Luiz Fernando Veríssimo, Moacyr Scliar e Zuenir Ventura) ou assistir a um filme como “Ainda Estou Aqui” (Walter Salles) para se ter a mínima noção do que significou para uma jovem de 22 anos ser torturada durante a ditadura militar no Brasil: choques, interrogatórios no pau de arara, palmatórias, que não deixaram apenas marcas físicas, mas marcas psicológicas para o resto da vida. Esse mesmo parlamentar em outra oportunidade disse publicamente em entrevista que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”.

Essa escalada do discurso de ódio insistentemente repetida por certos deputados e senadores viola preceitos constitucionais de direitos fundamentais e isso em nada se relaciona com a liberdade de expressão, pois já se encontram criminalizados pela legislação vigente. Portanto, “exaltar” um crime ou “glorificar” um criminoso se constitui em apologia ao crime (Art.287 Código Penal Brasileiro). A sociedade brasileira não pode mais aceitar e naturalizar a violência de gênero no espaço político brasileiro.

Os casos de Lisa Cook nos EUA e de Maria do Rosário no Brasil mostram que a ofensiva patriarcal é global e estratégica. Não se trata de incidentes isolados, mas de um projeto político que, sob o verniz da extrema direita, busca deslegitimar instituições, desestabilizar democracias e, sobretudo, controlar corpos e vozes dissidentes.

Combater esses ataques desde o seu nascedouro é fundamental: cada silêncio e cada normalização abrem caminho para a distopia. É inquietante observar como a extrema direita ainda consegue mobilizar apoio entre mulheres, no Brasil ou nos EUA, muitas das vezes em total contradição com os interesses de nossa própria emancipação.

A democracia não se destrói de um dia para o outro; ela se corrói lentamente quando toleramos a violência de gênero como arma política. Por isso, falar, resistir e denunciar não é exagero: é uma exigência para que não despertemos em um futuro em que The Handmaid’s Tale deixe de ser metáfora para se tornar realidade.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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