Programas de distribuição de renda são voto de cabresto?

Políticas importantes para combater a fome e a pobreza no país também são questionadas pelo seu uso eleitoral. Convidamos dois especialistas para debater o tema

Publicado em 25/09/2022 às 02h00
Pessoa passando fome
Pessoa passando fome. Crédito: Shutterstock

Políticas estruturantes  são importantes

Leonard de Almeida Batista
É associado II do Instituto Líderes do Amanhã

Após o nascimento da república brasileira, a prática da violência e opressão para direcionar votos pelos então chamados coronéis foi denominada de “voto de cabresto”. O fenômeno, que era muito mais comum no interior, distorcia o processo eleitoral, não refletia o desejo dos eleitores e culminava na eleição de indivíduos que já dominavam a região através da força.

Muito atacado ao longo dos tempos, o coronelismo perdeu espaço, mas a busca pelo direcionamento do voto nos currais eleitorais passou a ser feita de outras formas que prescindem da violência. Algumas décadas depois a prática foi substituída pela compra de votos, doação de cestas básicas e até mesmo distribuição de emprego na máquina pública para os eleitores.

Como resultado de décadas de omissão e má gestão pública, nosso país apresenta problemas sérios que precisam ser tratados a curto, médio, e longo prazo. Como exemplo, enquanto os países da OCDE possuem um índice de evasão escolar de apenas 2% de alunos de 15 anos fora da escola, em nosso país este número é de 8%. Realidades como essa, além de necessitar de medidas estruturantes, clamam também por medidas emergenciais de curto prazo. Por conta disso, muitos defendem a implementação de programas de distribuição de renda como uma das possíveis soluções. No entanto, deve-se ter em mente que tal medida deve ser necessariamente complementada por outras de médio e longo prazo, para que  tenha chance de sucesso.

Criada em 2003, a política de distribuição de renda mais marcante de nossa história recente foi o Bolsa Família. Mas, se pensarmos em nosso país quase 20 anos após a criação do programa, como estamos? Parte da resposta é: continuamos com nossos pobres sem mobilidade social, com nossos empresários com dificuldade de fazer negócios, excesso de impostos, e com crianças chegando ao ensino médio sem saber fazer operações básicas de matemática. Em outras palavras, as ações tomadas até o momento não estão surtindo efeito. O resultado? De 2010 a 2020 tivemos o pior crescimento da história, a nossa década perdida! Enquanto o PIB do mundo cresceu em média 30%, o PIB do Brasil cresceu apenas 2,2%!

Por outro lado, a queda na pobreza que pode ser atribuída aos programas sociais de distribuição de renda no Brasil foi um efeito importante e quase instantâneo. Ainda assim, não foi suficiente para que as famílias mais pobres desenvolvessem sua independência financeira, sua liberdade, e com isso sua dignidade por lutar pela própria felicidade. Com isso temos hoje uma parcela relevante de nossa população que depende integralmente da ajuda do Estado. 

Assim, o que se observa é que os programas de distribuição de renda são a nova forma de compra de votos. O voto de cabresto contemporâneo! Qual seria o real objetivo dessas políticas? É público e notório que o assistencialismo ameniza um pouco a situação das pessoas mais vulneráveis de maneira imediata e ainda contribui para inclinar o voto desse segmento relevante da população, mas não é eficaz a médio longo prazo para reduzir essa vulnerabilidade. Assim, o ideal seria a implementação de medidas estruturantes, como políticas que favoreçam a geração de empregos, o empreendedorismo, e o fomento de parcerias público-privadas. Um bom exemplo são os países do leste asiático. Em 1990 esses países tinham 977 milhões de pessoas na extrema pobreza. Em 2017 o número caiu para 29 milhões. A defesa do livre mercado funciona!

A incapacidade de implementar políticas que obtiveram sucesso ao redor do mundo no Brasil permite afirmar a existência de um interesse genuíno de grande parcela dos políticos em manter a população como está. Com o cidadão brasileiro sem educação, sem capacidade crítica de enxergar sua própria situação, e dependente de programas sociais para continuar subsistindo. É o “voto de cabresto” institucionalizado.

O brasileiro tem em suas características culturais ser um povo trabalhador, criativo e resiliente (o famoso “não desistimos nunca!”). Não há orgulho ou dignidade em ser ajudado pelo governo para subsistir. Estamos distribuindo benefícios que não ajudam as pessoas a se tornarem mais independentes. 

A melhora da qualidade de vida do brasileiro deve ser construída através de ações estruturantes, políticas eficazes e sustentáveis no longo prazo. Os programas de distribuição de renda existentes condenam a parcela mais vulnerável de nossa população ao voto de cabresto. Assim, o país caminha para mais “décadas perdidas”.

Políticas de inclusão social devem ter caráter permanente

Tânia Maria Silveira
É assistente social e doutoranda em Ciências Sociais (Ufes) - [email protected]

A pobreza é um tema recorrente no debate público brasileiro, porém as polêmicas eleitorais têm ofuscado a gravidade desse problema. Os números ditos e desditos instigam controvérsias coalhadas por irritação surpreendente. Uma pergunta paira no ar: Devemos ou não dar dinheiro aos pobres? Trata-se de uma questão a ser enfrentada com bases em argumentos consistentes e distantes do antigo bordão eleitoral sobre a utilidade do “voto de cabresto”.

Para tal debate, vale recordar que erradicar a pobreza e a marginalização é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme o Art. 3º da Constituição Federal. A erradicação da pobreza demanda políticas de distribuição de renda. Aliás, tal propósito é também estratégico para alcançar os demais objetivos republicanos, quais sejam, construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; e, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O aumento da pobreza é um fenômeno mundial. Os índices sociais monitorados de forma continua por organismos nacionais e internacionais mostram que, nos próximos anos, quase metade da população mundial, cerca de 3,3 bilhões de pessoas, estarão vivendo abaixo da linha da pobreza. É uma previsão preocupante porque poderá reverter décadas de avanço em prol da dignidade da pessoa humana.

O agravamento da pobreza se deve à junção das desigualdades estruturais, do impacto da Covid-19, somados ao aumento do preço dos alimentos. Essa é a avaliação da OXFAM Brasil divulgada, em abril deste ano, no relatório intitulado “Primeiro a crise, depois a catástrofe”. As consequências dessa crise múltipla pesam mais sobre os indivíduos mais pobres. A previsão mundial é aumentar, ainda neste ano, mais de 263 milhões de pessoas vivendo com renda de US$ 1,90 por dia. Com isso, o mundo terá um total de 860 milhões na extrema pobreza. Tais dados foram fundamentados em projeções do Banco Mundial e do Center for Global Development. Diante desse cenário, a organização conclamou os líderes do G20, do FMI e do Banco Mundial a agirem imediatamente.

No Brasil, a situação não é diferente. O estudo “Mapa da Nova Pobreza” mostra que, em 2021, chegou a 62,9 milhões o número de pessoas com renda domiciliar per capita de até R$ 497 mensais, o que representa 29,6% da população total do país. O estudo foi desenvolvido pela Fundação Getúlio Vargas/FGV Social, a partir de dados disponibilizados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Portanto, o Auxílio Emergencial e outros benefícios governamentais foram medidas assertivas para socorrer parcela significativa da população brasileira durante a pandemia. Além disso, os dados disponibilizados pelo governo federal mostram que, até julho de 2022, o Programa Auxílio Brasil incorporou quase 5,7 milhões de famílias (12,9 milhões de pessoas).

Nesse contexto, são necessárias políticas, programas e projetos integrados para educação, saúde, assistência social, geração de emprego e renda, no campo e na cidade.

É preciso envolver os órgãos públicos responsáveis em nível federal, estadual e municipal. Por essas razões, a sociedade brasileira deve exigir que as estratégias de inclusão social tenham caráter permanente. Tais políticas não podem ser um compromisso de apenas algum governo ou grupo de partidos políticos porque são necessárias para alcançar um dos objetivos fundamentais do Brasil.

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