Tanque na rua após o golpe civil-militar de 1964
Tanque na rua após o golpe civil-militar de 1964. Crédito: Reprodução

60 anos do golpe no ES: o começo, o fim e o meio na imprensa capixaba

Dias antes da deflagração do movimento de 31 de março, começaram a aparecer nas páginas de A Gazeta notas e notícias que alertavam para a possibilidade de um golpe contra o governo de Jango

Tempo de leitura: 10min
Publicado em 11/04/2024 às 16h22
  • Alexandre Caetano

    É jornalista e historiador

O golpe civil-militar que acabaria decretando a deposição do governo constitucional do presidente João Goulart (Jango) provocou, no dia 1º de abril de 1964, a paralisação total da cidade Vitória, graças à ação das entidades sindicais e do movimento popular e estudantil.

Em que pese a proximidade das mais desenvolvidas e industrializadas unidades da Federação, o Espírito Santo era um Estado onde a maioria da população vivia no meio rural (quase 80%) e tinha como principal atividade econômica a produção do café, com poucas indústrias instaladas.

Os governadores de Minas Gerais (Magalhães Pinto), de São Paulo (Ademar de Barros), do Rio Grande do Sul (Ildo Meneghetti) e do antigo Estado da Guanabara (Carlos Lacerda) conspiravam abertamente a favor do golpe, insuflado pelos principais órgãos de comunicação do país, como os veículos do poderoso dono dos Diários Associados (DA), Assis Chateaubriand, além de O Globo, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo e a Folha de São Paulo. Todos faziam oposição virulenta contra governo de Jango, denunciando um inexistente perigo de “comunização’ do Brasi ou de o país se transformar numa “nova Cuba”.

Já a imprensa capixaba parecia guardar certa distância daquele ambiente de conflagração que vivia o Brasil naquele momento.

Pelo contrário, no Espírito Santo, onde Jango chegou a trazer a família para passar o carnaval, poucas semanas antes do golpe, e pescar em Guarapari, o presidente não enfrentava o mesmo ambiente hostil dos estados mais poderosos do país.

O governador Francisco Lacerda de Aguiar, o Chiquinho, político populista e bom de voto, eleito pela segunda vez para o cargo em 1962 pela Coligação Democrática, que reunia diferentes partidos e setores sociais que se opunham ao velho PSD, recebeu Jango de braços abertos todas as vezes em que ele esteve no Estado, como na inauguração da antiga Cofavi (Companhia de Ferro e Aço de Vitória) e do Porto de Tubarão.

Ex-governador
Francisco Lacerda de Aguiar, ex-governador do ES. Crédito: Arquivo

Vitória possuía pouco mais de 100 mil habitantes, e os três jornais matutinos existentes na época eram ligados aos grupos políticos que travavam uma encarniçada luta pelo controle da máquina do Estado em todas as eleições realizadas desde o final do Estado Novo, a partir de 1946.

Apenas o jornal A Tribuna fazia ferrenha oposição a Jango. O matutino, na época, pertencia a uma rede de jornais espalhados pelo país, adquiridos pelo governador Ademar de Barros, na expectativa de nacionalizar seu nome e assim se credenciar para a disputa pela Presidência da República. O hoje extinto O Diário pertencia ao então governador Francisco Lacerda de Aguiar, ele próprio um produtor rural, não fazia oposição a Jango, pelo que se pode intuir, nos poucos volumes de edições do jornal disponíveis para consulta.

Infelizmente, qualquer pesquisa que pretenda examinar o papel da imprensa capixaba no período anterior e imediatamente posterior ao golpe de 1º de abril encontrará um obstáculo praticamente intransponível: não existem coleções conhecidas de O Diário e A Tribuna. Os arquivos desses jornais foram destruídos ou desapareceram, não sendo encontrados nem mesmo no acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.

Resta apenas o acervo de A Gazeta, que pertencia ao então ex-governador Carlos Fernando Monteiro Lindenberg e era, na época, uma espécie de porta-voz oficioso do PSD. O matutino, no período, tinha uma linha editorial para lá de simpática ao governo de Jango, inclusive por meio de editoriais que defendiam o presidente e criticavam os seus opositores. O jornal possuía colunistas como Jeová de Barros (Ramal 45), Darcy Santos, o Mickey (Bom dia) e Oswaldo Oleari (Diagonal), cujos textos e notas eram simpáticos às teses nacionalistas e às reformas de base propostas por Jango.

Na coluna Ramal 45 era possível encontrar notícias e informações sobre as reuniões e ações da Frente de Mobilização Popular (FMP), do Conselho Sindical do Espírito Santo e da União Estadual dos Estudantes (UEE), entre outras entidades. O mês de março de 1964 marcou o auge da campanha em favor da encampação da Companhia Central Brasil de Força Elétrica (CCBFE), concessionária do fornecimento de energia elétrica no Espírito Santo e subsidiária de uma multinacional canadense.

A Gazeta abraçou e apoiava abertamente a campanha, que era organizada por uma ampla frente, que incluía inclusive setores empresariais, abrindo espaço na primeira página. O presidente do comitê de coordenação da campanha era o deputado federal José Parente Frota, que era general e tido como político “nacionalista” por ninguém menos que Leonel Brizola.

Ironicamente, o golpe de 1º de abril de 1964 – data em que ele realmente se consolidou e se inclinou a favor da vitória dos golpistas - abortou uma greve geral pela encampação da CCBFE, que estava sendo convocada para o dia 3 de abril. Com a vitória do putsch, não se falou mais em greve ou encampação.

Logo depois da "Marcha com Deus pela Liberdade", organizada por setores direitistas em São Paulo, no dia 19 de março, com o apoio do governador Ademar de Barros, um grupo de senhoras capixabas ligadas à UDN iniciou uma articulação no sentido de realizar uma manifestação semelhante em Vitória. Resolveram então solicitar ao então arcebispo de Vitória, Dom João Batista de Albuquerque, que coordenasse a manifestação.

Dom João não somente se recusou a fazê-lo, como ainda condenou a manifestação conservadora. Foi o suficiente para que deputados estaduais conservadores, da tribuna da Assembleia Legislativa, iniciassem uma onda de ataques ao arcebispo, denunciando o "comunismo" de Dom João. A Gazeta saiu em defesa do bispo, tanto através de editorial, como por seus colunistas. Um deles chegou a chamar as tais senhoras udenistas de "histéricas".

Os dias que antecederam o golpe nas páginas de AG

Dias antes da deflagração do movimento de 31 de março, começaram a aparecer nas páginas de A Gazeta notas e notícias que alertavam para a possibilidade de um golpe contra o governo de Jango. No dia 22 de março, por exemplo, o Comando-Geral dos Trabalhadores (CGT) dirigiu uma nota publicada no jornal ao seu "dispositivo sindical no Espírito Santo”, ameaçando a decretação de uma greve geral caso o golpe acontecesse.

No mesmo dia, o jornal noticiou a inauguração no Centro de Vitória do edifício e agência do Banco de Crédito Real de Minas Gerais, que ganharia importância maior depois do golpe. Dias antes da deflagração do putsch de 1º de abril – uso a data como referência, porque foi quando a vitória dele realmente começou a se delinear -, foram publicadas nas páginas de A Gazeta diversas notas e matérias que alertavam para a possibilidade de um golpe para derrubar Jango. Assim, a edição do dia 22 de março foi publicada uma nota do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) dirigida ao "dispositivo sindical no Espírito Santo" (A Gazeta, 22/03/64).

Naquele dia, porém, o destaque da edição do matutino foi a inauguração do edifício no Centro, que contou com a participação dos governadores de Minas Gerais e do Espírito Santo, Magalhães Pinto (UDN) e Lacerda de Aguiar. O governador mineiro fez um discurso político em que se disse. "O povo quer reformas de base. Mas que essas reformas não venham de forma paternalista e sim partam do próprio povo, mais bem capacitado para julgá-lo", defendeu.

Numa entrevista concedida anos depois, em 1972, para a extinta revista Espírito Santo Agora, o ex-governador Chiquinho garantiu que havia tratado do golpe com Magalhães Pinto durante a visita dele ao Estado e que havia decidido apoiar o putsch.

Recentemente, encontrei a mesma versão numa coluna publicada no Jornal do Brasil, 15 dias depois da vitória do golpe. Uma versão que muitos duvidam, pelo menos no que diz respeito à sua decisão de apoiar a conspiração que resultou no golpe.

É o que mostram as ações de Lacerda de Aguiar no dia 1º de abril de 1964, quando se encontrou com líderes sindicais e dos movimentos populares pela manhã e, durante a tarde, recebeu uma comissão de representantes dos estudantes que foram em passeata até o Palácio Anchieta cobrar uma posição do governador.

Em ambos os casos, sua atitude foi dúbia. A mesma nota entregue pelo governador aos líderes estudantis, que aplaudiram e comemoraram a suposta posição de Chiquinho contra o golpe, depois seria distribuída e publicada pela imprensa como “prova” do apoio e adesão do governador ao golpe.

Na edição de dia 24 de março, os ferroviários publicaram uma nota de solidariedade a Jango. Numa das poucas referências à situação nacional, no dia 26 de março, em editorial de primeira página, A Gazeta criticava duramente os setores de direita, principalmente em função de incidentes que haviam acontecido com Brizola, em Belo Horizonte, e a "Marcha com a Família Pela Liberdade".

Dois dias antes do golpe, no dia 29 de março, o Conselho Sindical do Espírito Santo publicou uma "Nota ao Público" em A Gazeta, convocando todas as entidades a prepararem a Greve Geral pela Encampação da CBFE. A nota também manifestou o apoio das entidades sindicais capixabas às reformas de base defendidas por Jango, bem como aos "bravos cabos e marinheiros" que haviam se rebelado no Rio de Janeiro.

Mais adiante, a nota reafirmou a resolução da CGT dirigida ao seu "dispositivo sindical" no Espírito Santo, de decretação de greve geral em caso de golpe. "Continuaremos vigilantes e em condições de atender a ordem daquele organismo, contra o golpe, e de apoio ao presidente da República".

O início do golpe visto pela edição de A Gazeta

"Sumamente grave a situação em todo país: rebeladas guarnições do exército em Minas". Essa era a manchete de primeira página de A Gazeta, na edição de dia 1º de abril de 1964, noticiando que estava em andamento no país uma sublevação de tropas com o objetivo de derrubar o governo constitucional de Jango.

A primeira página do matutino deixa transparecer o clima de nervosismo e expectativa de como foi produzida a edição, pois registra notas e telegramas feitos até a madrugada daquele mesmo dia.

Em notas publicadas pelo jornal, a UNE e CGT (Comando-Geral dos Trabalhadores) convocavam uma greve geral. A Presidência da República anunciava o envio de tropas do I Exército para combater as guarnições militares que haviam se sublevado, e marchavam para cidade do Rio de Janeiro, onde Jango se encontrava.

Manifestos do então governador do Paraná, Ney Braga, e do presidente de Congresso, Áureo Moura Andrade, falavam em defesa da "legalidade". O colunista Darly Santos, por sua vez, atacava os golpistas e defendida a reformas de base proposta por Jango.

A Gazeta não circulou no dia 2 de abril, quando foi declarada a vacância da Presidência da República por Auro Moura Andrade, e a vitória dos golpistas se consolidou completamente. No dia seguinte, 3 de abril, abriu a primeira página com a seguinte manchete "Forças Armadas assumiram o comando do país e logo entregam o governo ao poder civil”, anunciando assim uma guinada em sua linha editorial, para se colocar ao lado do golpe.

Não foi o que aconteceu, os militares só devolveriam o poder aos civis 21 anos depois, em 1985, ironicamente, por meio do ex-presidente do partido do governo, o PDS (Partido Democrático Social), José Sarney, que assumiu a presidência da República no lugar de Tancredo Neves (PMDB), que havia ganhado a eleição indireta no Colégio Eleitoral, mas morreria sem tomar posse do cargo.

O que aconteceu com imprensa diária capixaba depois do golpe

Com o ocaso político do governador Francisco Lacerda de Aguiar, que depois do golpe enfrentou e derrotou um processo de impeachment movido por seus adversários políticos do PSD,  mas foi obrigado pelos militares a renunciar ao cargo no início de 1966 e abandonar a vida pública, O Diário foi vendido e passaria por vários donos, definhando até fechar definitivamente as portas, na década de 1980.

A Tribuna também seria vendida por Ademar de Barros, depois que foi cassado pelos militares, também acusado de corrupção. No final da década de 1960, o matutino foi adquirido pelo Grupo João Santos, de Pernambuco, e ficou fora de circulação durante mais de um ano, para que pudesse passar por um processo de total reformulação, com a construção de uma sede nova, na Ilha de Santa Maria, a aquisição de um novo maquinário e a contratação de uma nova equipe. Posteriormente, com a aquisição de uma emissora de televisão e de rádio, se transformou na Rede Tribuna de Comunicação, atualmente enfrentando sérios e graves problemas financeiros e judiciais.

A Gazeta chegou a ser objeto de um Inquérito Policial Militar (IPM) depois do golpe, sem maiores consequência. Poucos dias depois da deflagração do golpe, houve mudança na direção jornal feita de forma discreta, mas decisiva, quando o nome do general Darcy Pacheco de Queiroz, cunhado do ex-governador Carlos Lindenberg, passou a constar como seu diretor.

Nos anos que se seguiram, o filho do veterano político pessedista Carlos Fernando Monteiro Lindenberg Filho, o Cariê, assumiu a direção e promoveu a total reformulação e modernização do jornal, primeiro a ser impresso em offset no Espírito Santo, iniciando as bases da estruturação da Rede Gazeta, com emissoras de rádio e televisão. Mas essa é outra história.

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