Publicado em 9 de janeiro de 2024 às 11:38
A alegria deu lugar à tristeza quando, no dia de sua festa de casamento, Mamun teve que sepultar 16 dos seus parentes, mortos por um raio a caminho da cerimônia, no interior de Bangladesh.>
Vestidos com seus melhores ternos e sáris, os familiares de Mamun tomaram um barco para participar da celebração. >
No trajeto, eles foram surpreendidos por uma forte tempestade, que atingiu a embarcação e fez com que ela virasse. >
Os parentes de Mamun buscaram abrigo em uma cobertura metálica às margens do rio e ali foram atingidos pelo raio.>
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Mamun decidiu só agora compartilhar o que aconteceu naquele fatídico dia de agosto de 2021.>
O jovem de 21 anos se preparava para o casamento na casa dos sogros na região de Shibganj, no noroeste do país, quando diz ter ouvido o forte estrondo de um trovão. >
Minutos depois, ele recebeu a notícia da tragédia.>
Ao chegar ao local do incidente, Mamum diz ter encontrado um cenário de caos e confusão.>
"Algumas pessoas estavam abraçando os corpos", relembra ele. "Os feridos choravam de dor... crianças gritavam. Não sabia o que fazer. Não conseguia nem mesmo decidir quem eu deveria ajudar primeiro.">
Mamun perdeu seu pai, seus avós, primos, tios e tias. Sua mãe se salvou pois não estava no barco.>
"Quando encontrei o corpo sem vida do meu pai, simplesmente desabei em lágrimas", diz. "Fiquei muito chocado e passei mal.">
Naquela mesma noite, ocorreu o funeral dos parentes de Mamun. >
O banquete preparado para o casamento acabou sendo distribuído para pessoas sem teto.>
Mamun se casou posteriormente. Ele diz que não comemora seu aniversário de casamento. A data desperta dolorosas recordações.>
"Depois daquele incidente trágico, realmente tenho medo de chuva e de trovões", diz.>
Bangladesh sofre com condições climáticas extremas e fortes tempestades. Mais pessoas morrem anualmente atingidas por raios do que pelas enchentes.>
O país tem cerca de 170 milhões de habitantes e, em média, 300 pessoas morrem atingidas por raios todos os anos, segundo dados das Nações Unidas.>
Em termos comparativos, os Estados Unidos, com quase o dobro da população (pouco mais de 330 milhões), sofrem menos de 20 mortes por ano.>
O Brasil contou, no último censo, 203 milhões de habitantes e registra em média 110 óbitos por ano, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).>
O número de mortes causadas por raios em Bangladesh também vem aumentando em grandes proporções. >
Nos anos 1990, eram apenas algumas dezenas por ano.>
Para a Nasa (agência espacial americana), a ONU e o governo de Bangladesh, o maior número de incidentes mortais se deve ao aumento das tempestades, causado pelas mudanças climáticas.>
"O aquecimento global, as mudanças ambientais e os padrões de vida contribuem para o aumento do número de mortes causadas pelos raios", diz Mijanur Rahman, diretor-geral da divisão de gestão de desastres de Bangladesh, à BBC.>
A situação é tão séria que o governo acrescentou os raios à lista oficial de desastres naturais enfrentados pelo país, ao lado das enchentes, ciclones, terremotos e secas.>
Agricultores são a maioria das vítimas dos raios. >
Eles ficam mais vulneráveis porque trabalham no campo durante os meses chuvosos da estação das monções, na primavera e no verão.>
Uma camisa de futebol, pendurada em uma velha cerca na região de Satkhira, no sudoeste do país, é uma comovente recordação de uma dessas vítimas.>
Abdullah havia vestido aquela camisa poucos dias antes, enquanto atravessava os vastos campos de arroz da região para iniciar seu dia de trabalho.>
Agora, pendurada na cerca de madeira, aquela camisa do Barcelona, da Espanha, está desgastada e chamuscada. >
Suas pontas de fio queimadas mostram as marcas deixadas pelo raio, em maio deste ano.>
Rehana — esposa de Abdullah por três décadas — foi quem acompanhou a reportagem da BBC à lavoura para contar o que aconteceu no dia em que perdeu seu marido.>
Era um dia de sol escaldante quando Abdullah e um grupo de agricultores saíram para colher arroz, lembra ela. >
Mas, no final da tarde, começou uma forte tempestade. E um raio atingiu o marido de Rehana.>
"Alguns dos outros agricultores o trouxeram para esta loja ao lado da estrada", conta Rehana, apontando para uma pequena barraca ao longo da via. "Ali, ele já estava morto.">
De volta à casa de Rehana, o arroz colhido por Abdullah um dia antes do incidente permanece empilhado fora do pequeno imóvel de um dormitório.>
O casal havia acabado de contrair um empréstimo para construir um segundo quarto e ampliar sua modesta resistência.>
No lado de dentro, o filho do casal — Masood, com 14 anos — lê um livro. >
Agora viúva, Rehana teme que permanecerá com a dívida por toda a vida e se pergunta como conseguirá pagar os estudos do filho.>
"O medo me atingiu tão profundamente que, agora, se vejo uma nuvem no céu, não consigo nem deixar meu filho sair de casa", diz ela, chorando.>
Os raios também são uma preocupação crescente em outros países, como a Índia.>
Vizinho de Bangladesh, o país também observou aumento da incidência de raios nos últimos anos. >
Mas uma série de iniciativas trouxe redução significativa do número de mortes.>
Bangladesh está tentando fazer o mesmo.>
Ativistas afirmam ser preciso aumentar o plantio de árvores altas em áreas rurais remotas, para absorver o impacto dos raios, especialmente em locais que sofreram desmatamento.>
Eles também reivindicam um programa de construção em larga escala de abrigos contra raios, que ofereçam proteção aos agricultores, além de sistemas de alerta precoce para avisar a população sobre possíveis tempestades.>
Um obstáculo é a baixa conectividade à internet e o uso escasso de telefones celulares nas regiões onde as pessoas são mais vulneráveis.>
Outro desafio é a falta de conscientização. >
Muitas pessoas no país não entendem amplamente o risco dos raios, talvez pela baixa chance de ser atingidas.>
O agricultor Ripon Hossen estava com Abdullah no dia de sua morte. >
Ele conta que nunca imaginou como seria presenciar a queda de um raio de tão perto.>
"Foi um barulho muito alto, e vi muitas luzes piscando", relembra. >
"Foi como se um disco de fogo tivesse caído sobre nós.">
"Senti um grande choque elétrico e caí no chão. Depois de algum tempo, abri os olhos e vi que Abdullah estava morto.">
Hossen diz não conseguir acreditar como sobreviveu.>
Ele conta que, agora, tem pavor de trabalhar a céu aberto. >
Mas, nesta região empobrecida, a agricultura é sua única fonte de renda disponível.>
"Choro sempre que me lembro do meu amigo Abdullah", diz. >
"Quando fecho meus olhos à noite, todas as recordações daquele dia voltam como um flashback. Não consigo me conformar.">
*Com colaboração e imagens de Neha Sharma, Aamir Peerzada, Salman Saeed e Tarekuzzaman Shimul.>
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