Publicado em 16 de julho de 2025 às 12:25
O governo do Brasil vai oficializar sua adesão a uma ação movida pela África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça (CIJ), da Organização das Nações Unidas (ONU) nos próximos dias, disse à BBC News Brasil uma fonte do governo brasileiro em caráter reservado. >
Na ação, a África do Sul acusa o governo israelense de promover um genocídio contra o povo palestino por meio da ação militar realizada na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Israel nega a acusação e diz que a África do Sul "distorce a verdade" em no processo.>
A CIJ é um órgão das Nações Unidas que julga países, e não pessoas. O processo ao qual o Brasil deverá aderir já está em curso desde dezembro de 2023. O julgamento ainda está em andamento e ainda não há prazo para a sua conclusão. Apesar de a Corte já ter emitido decisões preliminares contra as ações israelenses, essas medidas não foram cumpridas. A adesão de mais países à ação aumenta a pressão internacional contra as ações de Israel. >
Segundo essa fonte brasileira, o Brasil vai ingressar no processo apresentando sua interpretação sobre como e se a Convenção das Nações Unidas sobre Direitos Humanos está sendo ou não cumprida no conflito. >
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A informação havia sido inicialmente divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo e foi confirmada pela reportagem. >
Em janeiro de 2024, o Brasil já havia anunciado que apoiava a ação movida contra Israel, mas o desejo de aderir formalmente à ação foi comunicado publicamente pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, em entrevista à rede de TV Al Jazeera, durante a cúpula dos Brics, no início do mês, no Rio.>
A tendência é de que a posição do Brasil siga uma linha parecida com a da África do Sul e acuse Israel de violar direitos humanos do povo palestino. >
O processo pede o fim das ações classificadas pela África do Sul como genocidas contra o povo palestino e o julgamento de pessoas e instituições que praticaram ou contribuíram para esses supostos crimes. O eventual julgamento das pessoas envolvidas por supostos crimes de genocídio é feito pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), que funciona em Haia, na Holanda, e do qual Israel não é signatário. >
A adesão do Brasil ao processo acontece em um contexto de turbulência nas relações internacionais do país. >
Na semana passada, os Estados Unidos, principal aliado militar de Israel, anunciaram tarifas de 50% a produtos brasileiros citando, entre os motivos para a decisão, o processo judicial que tramita contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no Supremo Tribunal Federal (STF). >
Nos últimos anos, Bolsonaro se apresentou como apoiador do Estado de Israel. >
A ação contra Israel foi inicialmente movida pela África do Sul em dezembro de 2023, quando as ações militares em Gaza se intensificaram após os atentados promovidos pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, quando militantes do grupo invadiram comunidades israelenses e mataram ao menos 1,1 mil pessoas.>
Em resposta à ação do Hamas, Israel deu início a uma ofensiva na Faixa de Gaza que, segundo a ONU, havia matado pelo menos 45 mil pessoas até dezembro de 2024. Estudos mais recentes estimam entre 50 mil e 75 mil o número de palestinos mortos pelas ações militares israelenses em Gaza.>
A adesão do Brasil à ação vai na linha das recentes manifestações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre o assunto.>
"Não podemos permanecer indiferentes ao genocídio praticado por Israel em Gaza e à matança indiscriminada de civis inocentes e o uso da fome como arma de guerra", disse Lula durante discurso na Cúpula dos Brics, no início do mês, no Rio de Janeiro.>
As declarações Lula sobre a crise humanitária em Gaza fizeram o governo israelense declarar que Lula é persona non grata em Israel. >
Na linguagem diplomática, o termo é uma indicação de desagravo e significa que o presidente Lula é uma pessoa não desejada no território israelense.>
Além do Brasil, países como a Espanha, Irlanda, Cuba, Bolívia e Turquia também já aderiram à ação contra Israel. >
A BBC News Brasil pediu um posicionamento sobre o assunto à Embaixada de Israel no Brasil, mas até a publicação desta reportagem nenhuma resposta havia sido enviada. O Itamaraty também não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem. >
A Confederação Israelita do Brasil (Conib), entidade que atua na defesa da comunidade judaica no país, condenou a decisão do governo brasileiro. >
"A Conib condena nova sinalização do governo brasileiro de que pretende apoiar formalmente a África do Sul na falsa alegação de genocídio em Gaza [...] Infelizmente, o governo Lula abandonou a tradição brasileira de amizade e parceria com Israel", diz um trecho da nota divulgada pela instituição. >
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a decisão do Brasil pode gerar reações positivas de parte da comunidade internacional, mas também deverá gerar reações negativas tanto fora quanto dentro do país. >
Em entrevista à rede de TV Al Jazeera, do Catar, Mauro Vieira explicou a decisão do governo. >
"Nós fizemos grandes esforços para tentar chamar para negociações e os acontecimentos dessa guerra nos fizeram tomar essa decisão de nos juntar à África do Sul nesse caso no CIJ", disse Vieira. >
A adesão do Brasil à ação era um movimento defendido por alas do governo brasileiro desde 2023. >
Um dos principais defensores da ideia é o assessor para Assuntos Internacionais da Presidência da República, embaixador Celso Amorim. >
Além dele, outros membros do entorno do presidente também defendiam a medida apesar da expectativa de uma reação negativa tanto internacional quanto doméstica. >
Nos últimos anos, lideranças do segmento evangélico passaram a se aproximar do governo de Israel e a rechaçar as posições do governo Lula que fossem críticas às ações israelenses em Gaza. >
Essa proximidade se deu, em parte, por conta da crença entre certos grupos evangélicos de que a Bíblia determina que os cristãos defendam a existência do Estado de Israel. >
Apesar desse cálculo, o presidente Lula já vinha se manifestando diversas vezes sobre o conflito em Gaza e usando o termo genocídio para classificar o resultado das ações militares na região. >
O tema também foi abordado em profundidade nas declarações finais das últimas duas cúpulas dos Brics, grupo de 11 economias emergentes do qual o Brasil faz parte. >
Na mais recente cúpula do grupo, no início de julho, no Rio de Janeiro, a declaração final criticou as ações israelenses em Gaza e pediu a retirada das tropas do país da região.>
"Exortamos as partes a se engajarem, de boa-fé, em novas negociações com vistas à obtenção de um cessar-fogo imediato, permanente e incondicional; à retirada completa das forças israelenses da Faixa de Gaza e de todas as demais partes do Território Palestino Ocupado", diz um trecho da declaração.>
Para a professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Cristina Pecequillo, a decisão do governo brasileiro estaria em linha com a tradição diplomática do Brasil de condenar abusos de direitos humanos. >
Apesar disso, ela avalia que o governo poderá enfrentar reações negativas tanto de fora quanto de dentro do Brasil. >
"Todos aqueles que apoiam Israel incondicionalmente, incluindo os EUA, deverão fazer uma avaliação negativa da posição brasileira. São movimentos geopolíticos esperados. Isso já vinha ocorrendo desde que o Brasil se manifestou, pela primeira vez, no sentido de que estaria havendo um genocídio. Houve pressão dos Estados Unidos e de Israel contra o Brasil", diz a professora à BBC News Brasil. >
Para ela, no plano doméstico, também deverá haver reações. >
"Há risco de desgaste interno à medida em que a questão de Israel é bastante instrumentalizada pela oposição junto ao eleitorado evangélico mais radical", diz. >
O professor livre-docente de Direito Internacional da Universidade de São Paulo (USP) João Amorim pontua aspectos positivos da decisão brasileira. >
"Essa medida coloca o Brasil junto à esmagadora maioria da opinião pública internacional e fortalece a posição do país na defesa da proteção de civis", argumenta. >
Por outro lado, ele também considera que há riscos diplomáticos envolvidos. >
"Os efeitos negativos serão, provavelmente, o aprofundamento do estremecimento das relações entre Brasil e Israel com a classificação dessa atitude como um ato antissemita. Também há o risco de uma reação dos Estados Unidos", avalia o professor. >
Na ação movida pela África do Sul, o país disse que as ações de Israel "têm por objetivo provocar a destruição de uma parte substancial do grupo nacional, racial e étnico palestino".>
No documento de 84 páginas, o país africano argumenta que os supostos atos genocidas de Israel incluem matar palestinos, causar graves danos mentais e corporais e infligir deliberadamente condições destinadas a "provocar a sua destruição física como grupo". >
O documento também afirma que as declarações das autoridades israelenses expressam intenções genocidas.>
Por outro lado, o governo de Israel vem refutando as acusações feitas pela África do Sul.>
"Não, África do Sul. Não somos nós que estamos perpetrando genocídio. É o Hamas. Ele (Hamas) mataria a todos nós se ele pudesse. Em contraste, as FDI (Forças de Defesa de Israel) estão agindo tão moralmente quanto possível", afirmou o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, em dezembro de 2023.>
O julgamento é polêmico, entre diversos fatores, por conta da dificuldade de se classificar o crime de genocídio. >
Outro motivo que vem gerando polêmica é o fato de o crime ter sido reconhecido internacionalmente pela primeira vez em 1946, um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, em meio ao choque causado pelo holocausto de judeus orquestrado pela Alemanha nazista. Estima-se que pelo menos seis milhões de judeus tenham morrido durante o conflito. >
Nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre Genocídio de 1948, o genocídio é um ato ou uma série de atos praticados com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.>
Esse objetivo pode ser atingido a partir de práticas como: matar membros do grupo; causar danos corporais ou mentais graves a membros do grupo; infligir deliberadamente condições de vida calculadas para trazer destruição física; impor medidas destinadas a prevenir nascimentos; e transferir de forma forçada crianças do grupo para outro grupo.>
Em janeiro de 2024, a CIJ emitiu uma ordem para que Israel suspendesse "atos de genocídio" em Gaza, embora não tenha determinado um cessar-fogo imediato. Israel não respondeu às determinações da Corte. >
Além da ação movida pela África do Sul e com apoio de países como o Brasil, pareceres elaborados pela relatora especial da ONU para os territórios palestinos ocupados, Francesa Albanese, também classificaram as ações de Israel como genocidas. >
Em 2024, ela divulgou um relatório intitulado "Anatomia de um genocídio", criticando as ações de Israel. >
"Ao analisar os padrões de violência e as políticas israelenses no seu ataque a Gaza, o presente relatório conclui que existem motivos razoáveis para acreditar que o limiar indicando que Israel cometeu genocídio foi cumprido", diz um trecho do documento. >
Em resposta, a missão diplomática de Israel em Genebra, na Suíça, disse que o relatório tem motivações políticas. >
"Fica claro no relatório que a relatora especial começou com a conclusão de que Israel está a cometendo genocídio e depois tentou provar as suas opiniões distorcidas e politicamente motivadas com argumentos e justificações fracos." >
Albanese também é a autora de um relatório divulgado em julho para o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em que ela aponta que empresas da América Latina, entre elas a Petrobras, estariam contribuindo para o esforço de guerra israelense ao vender petróleo para o país. >
"Enquanto a vida na Faixa de Gaza está sendo destruída e a Cisjordânia é cada vez mais atacada, este relatório demonstra por que o genocídio de Israel prossegue: porque é lucrativo para muitas pessoas", afirma o relatório. >
A Petrobras, no entanto, disse que não vendeu "petróleo bruto nem óleo combustível para clientes israelenses durante o período mencionado" e que não é possível concluir que a Petrobras tenha exportado petróleo para Israel pelo simples fato de que a companhia detém grande participação nos campos petrolíferos brasileiros. >
Para a ex-juíza do Tribunal Penal Internacional (TPI), professora e especialista em direito humanitário internacional Sylvia Steiner, ações como a movida contra Israel têm mostrado uma deterioração do respeito ao sistema de proteção internacional aos direitos humanos. >
"O que estamos vendo são países violando as determinações da Corte e não serem punidos por isso. Isso enfraquece o direito internacional e faz com que nós retrocedamos a um tempo de barbárie. É o que estamos vendo em Israel e na Rússia, por exemplo", diz Steiner à BBC News Brasil. >
Steiner faz menção a decisões da Corte Internacional de Justiça que determinaram o fim das ações militares de Israel na Faixa de Gaza e da Rússia na Ucrânia e que, até hoje, nunca foram cumpridas. >
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