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O que é a pascalina, 'primeira tentativa de substituir a mente humana por uma máquina'

O que é a pascalina, 'primeira tentativa de substituir a mente humana por uma máquina'

"É muito mais do que uma simples máquina. É o emblema de todo um capítulo da história da humanidade", descreveu o matemático Cédric Villani.

Publicado em 14 de dezembro de 2025 às 17:44

Imagem BBC Brasil
A pascalina podia somar, subtrair, multiplicar e dividir. O exemplar em questão mede 36 × 12,5 × 6,5 cm Crédito: Getty Images

"Que erro tão espantoso! Que triste desinteresse por nosso patrimônio científico! Que falta de compreensão de Pascal…"

Com essas palavras contundentes, os membros do Institut de France, a principal instituição cultural e científica do país, manifestaram horror diante da iminente venda de uma pascalina, uma máquina de cálculo inventada pelo gigante intelectual do século 17 Blaise Pascal.

Em artigo publicado pelo jornal francês Le Monde em 01/11, destacaram que "a pascalina, origem da informática moderna, transformou a França no berço da aventura informática: uma revolução que mudou nossa compreensão do mundo".

Eles afirmam ainda que "colocou o país na vanguarda da mudança epistemológica da era moderna e continua sendo uma das principais joias do patrimônio intelectual e tecnológico francês".

Os membros do Institut de France pediam ao governo francês que reconsiderasse a licença de exportação concedida à casa de leilões Christie's, com a qual "o Estado renunciou à classificação desta pascalina como 'tesouro nacional'", o que teria assegurado que ela permanecesse no país.

Dois meses antes, a Christie's havia anunciado o leilão de uma coleção excepcional: a do francês de origem catalã Léon Parcé, cuja biblioteca privada continha quase uma centena de tesouros bibliográficos.

Entre os itens estavam incunábulos — livros impressos nos primeiros tempos da imprensa com tipos móveis —, tratados científicos do Renascimento, manuscritos raríssimos e obras que traçam a evolução do pensamento europeu.

E o destaque da coleção era justamente a pascalina, defendida com tanto entusiasmo pelos intelectuais franceses.

A máquina estava avaliada entre US$ 2 milhões (cerca de R$ 7 milhões) e US$ 3,5 milhões (cerca de R$ 12,25 milhões). A Christie's a descreveu como "instrumento científico mais importante jamais oferecido em leilão".

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O mecanismo, criado por Blaise Pascal, era inovador, mas também difícil de fabricar Crédito: Getty Images

"É muito mais do que uma simples máquina. É o emblema de todo um capítulo da história da humanidade", afirma o matemático francês Cédric Villani em vídeo promocional da casa de leilões.

Villani explicava nele o funcionamento da charmosa ferramenta, que pôde ser admirada pessoalmente por muitos interessados. Como costuma acontecer com lotes desse porte, a coleção percorreu uma turnê internacional: passou por Nova York, depois por Hong Kong e, por fim, chegou a Paris, nas vésperas do leilão marcado para 19/11.

Mas qual é a história dessa caixa de madeira, adornada com hastes de ébano e com oito rodas visíveis que compõem um engenhoso sistema de engrenagens?

Pascal: multifacetado e genial

As histórias das invenções costumam começar com seus criadores. No caso da pascalina, o protagonista é Blaise Pascal, uma mente que parece destilar genialidade.

Por isso, resumir Blaise Pascal (1623-1662) é uma tarefa difícil. Ele foi um dos grandes polímatas da história, com contribuições marcantes em matemática, física, filosofia e pensamento religioso.

Hoje em dia, seu nome está presente em conceitos como a pressão de Pascal, uma unidade que homenageia seus estudos sobre gases, e no triângulo de Pascal, um padrão numérico em forma de triângulo que mostra relações surpreendentes entre os números e ajuda a resolver problemas matemáticos.

Também é lembrado pela "aposta de Pascal", um argumento filosófico que sugere ser mais racional acreditar em Deus.

Nos experimentos com pressão e vácuo, demonstrou que o ar exerce força e que o vácuo realmente existe. E, em correspondência com o matemático Pierre de Fermat, estabeleceu os fundamentos da teoria moderna da probabilidade.

Além de intelectual e matemático, Pascal foi escritor brilhante. Seu livro mais famoso, Pensées (Pensamentos, em tradução livre), é considerado uma das obras mais elegantes da literatura francesa.

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Reprodução histórica digitalmente restaurada de um original do século 19, mostrando Blaise Pascal aos doze anos estudando matemática Crédito: Getty Images

E se isso tudo soa muito intelectual, Pascal também dedicou tempo a projetos mais práticos.

Para demonstrar sua famosa Lei de Pascal, criou dispositivos com tubos e êmbolos, a peça que empurra o líquido dentro de um cilindro, antecessores da seringa usada na medicina moderna.

Em Paris, desenvolveu ainda o sistema de carruagens urbanasCarrosses à cinq sols (Carruagens a cinco soldos — moeda antiga de baixo valor), com rotas fixas, tarifas regulares e horários determinados, que começou a operar em 1662, e é considerado por alguns como o embrião do transporte público moderno.

Isso foi duas décadas depois de Pascal criar uma "máquina aritmética" capaz de realizar cálculos com facilidade e sem risco de erro.

Para o pai

Pascal tinha uma relação próxima com o pai, pertencente à nobreza de serviço: um funcionário da administração financeira, mais ligado ao aparato do Estado do que à aristocracia tradicional.

Dele recebeu uma educação extraordinária e pouco convencional. Étienne Pascal era um matemático competente, com ideias pedagógicas adiantadas ao seu tempo, e educou o filho em casa seguindo seus próprios métodos.

Os resultados foram surpreendentes: aos 11 anos, Pascal escreveu um breve tratado sobre os sons de corpos vibrantes; aos 16 anos, publicou um tratado sobre geometria projetiva.

E quando seu pai assumiu o cargo de coletor de impostos na Normandia (França), Pascal, aos 19 anos, inventou algo que o ajudasse na carga contábil.

Nos anos seguintes, foi aprimorando seu projeto, com engrenagens e um corpo de madeira elegante que abrigava um sistema engenhoso.

O maior desafio foi criar um mecanismo para levar os números adiante: a máquina tinha uma roda para as unidades, outra para as dezenas, outra para as centenas, e assim por diante.

Imagine somar manualmente 19 + 11, 9 + 1 = 10, escreve-se 0 e "leva-se 1" para a coluna seguinte. Esse "leva 1" precisava de uma solução mecânica, que Pascal encontrou.

Em 1645, Pascal mostrou a máquina aos seus contemporâneos, e publica o "Aviso necessário para quem tem curiosidade de ver a máquina aritmética e utilizá-la", folheto que servia tanto como manual quanto como divulgação.

No texto, elogia as virtudes da criação e fala diretamente ao leitor: "Você sabia que, ao trabalhar manualmente, é preciso constantemente lembrar ou 'emprestar' números, e quantos erros se cometem ao fazê-lo, a menos que se tenha muita prática, o que cansa a mente rapidamente".

"Esta máquina libera o usuário desse incômodo; basta bom senso, e ela o alivia da limitação da memória."

Pascal garantia que o risco de erro era nulo.

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Ilustração da "máquina contadora digital" publicada na Crédito: Getty Images

Para proteger a invenção de falsificações, em 1649 Pascal obteve um privilégio assinado pelo rei da França, Luís 14, que proibia qualquer pessoa de fabricar cópias sob pena de uma grande multa, "de agora em diante e para sempre".

Isso tornou a pascalina a primeira máquina a receber o equivalente a uma patente.

Orgulhoso de sua invenção, enviou uma pascalina à rainha Cristina da Suécia, uma das mulheres mais cultas de seu tempo e por quem ele, como muitos, nutria admiração.

Na carta que acompanhava o presente, escreveu: "Em você reside o poder dispensado pela luz da ciência, e a ciência exaltada pelo brilho da autoridade (...)". E conclui: "Isso, Senhora, é o que me leva a oferecer a Vossa Majestade este presente, ainda que indigno de vossa pessoa."

Nos anos seguintes, Pascal construiu versões diferentes da máquina, nem todas com o mesmo design: havia máquinas decimais para cálculos, máquinas para medir terras e máquinas adaptadas para contabilidade.

Mas a produção artesanal e cara impediu sua distribuição em larga escala.

Ainda assim, como observa o artigo do Le Monde, "seus contemporâneos ficaram deslumbrados. Os eruditos mais destacados se interessaram pelo dispositivo, começando pelo matemático [Gilles de] Roberval".

A pascalina também é a primeira máquina mencionada na Enciclopédia de Diderot e d'Alembert.

E se tornou o protótipo de gerações posteriores de calculadoras, das rodas e cilindros de Leibniz até os aritmômetros do século 19.

Por isso, não surpreende que uma das primeiras linguagens de programação modernas e estruturadas, publicada em 1970 pelo suiço Niklaus Wirth, tenha recebido o nome Pascal, em homenagem àquele feito.

Mas voltemos ao nosso assunto.

Reticências

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Blaise Pascal (1623–1662) foi uma figura central no nascimento da ciência moderna. Aqui, "Pascal estudando a cicloide" (1785), escultura de Augustin Pajou, Museu do Louvre, Paris, França Crédito: Getty Images

O leilão da coleção de Léon Parcé foi realizado com sucesso.

Entre os itens vendidos estavam obras científicas fundamentais, como a 1ª edição (1687, Principia Matemática da Filosofia Natural, em tradução livre) de Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica, de Isaac Newton, e Discorsi e dimostrazioni matematiche, intorno a due nuove scienze (1638, Discursos e demonstrações matemáticas sobre duas novas ciências, em tradução livre), a última grande obra de Galileu sobre física e mecânica.

Também mudaram de mãos obras de pensadores como Johannes Kepler, Pierre de Fermat, Michel de Montaigne, Montesquieu e até Miguel de Cervantes.

Tudo refletia a abrangência da coleção erudita.

Mas Parcé era, acima de tudo, um grande admirador de Pascal. Por isso, dedicou décadas a colecionar obras, cartas, instrumentos e primeiras edições relacionadas a essa importante figura francesa.

As peças foram vendidas ao maior lance, mas houve uma grande ausência: horas antes, a Christie's havia confirmado que não levaria adiante o leilão da pascalina.

Os críticos da venda aberta da pascalina não se limitaram a publicar opiniões na imprensa; apresentaram um recurso legal de emergência para impedi-la.

Embora seis das nove pascalinas originais conhecidas estejam em museus franceses, esta — que estava em mãos privadas — "é a única projetada para topografia; funciona com unidades de medida adequadas (braças, pés, polegadas e linhas)".

"É crucial que este objeto, pouco conhecido até agora, exceto por alguns especialistas, faça parte de uma coleção pública, para que possa ser estudado pela comunidade científica internacional e para que o país onde foi criado possua um exemplar completo deste instrumento."

Para avaliar os méritos do protesto, o tribunal administrativo de Paris bloqueou temporariamente uma autorização de exportação concedida pelo ministro da Cultura francês em maio.

O juiz concluiu que havia "sérias dúvidas" sobre a legalidade do certificado, segundo comunicado do tribunal de Paris.

A decisão determinou que a máquina "provavelmente seria classificada como 'tesouro nacional', segundo a definição do código do patrimônio", o que impediria a pascalina de deixar o território francês.

O tribunal acrescentou, porém, que a decisão é provisória até a sentença definitiva.

Assim, ao menos por enquanto, a pascalina em disputa permanece em casa.

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